sexta-feira, 17 de julho de 2015

Gabriel e a tartaruga.

Cantava baixinho London, London no ônibus quando perguntaram sobre a mancha que tenho na mão, se eu a tenho desde que nasci. Sentava ao meu lado, era mulher de seus cinquenta anos. A mancha em questão é vermelha e, quão mais velho for quem a veja, menos se parece com uma tartaruga - para minhas primas, ela chama-se Dani e esconde-se dentro do casco quando esfregamos o dedo sobre ela. E sim, senhora, tenho-a desde que apareci em vida. Perguntou-me então se tinha outras semelhantes pelo braço - São Paulo fria, manga longa. Respondi que não e me preparava para jurar até a morte que era saudável, que mesmo se fosse doença, a probabilidade seria de não ser contagiosa, mas que ela poderia mudar de lugar se preferisse; eu não me ofenderia. Visitaria a dermatologista na mesma semana, pedindo que me salvasse, mas não me ofenderia.

Restou sentada minha companhia. Disse-me que seu filho Gabriel tinha manchas iguais, e em maior número, espalhadas pelo braço. Diz a Gabriel que elas o fazem especial, contou-me, sem deixar de olhar minha tartaruga. Sua expressão não revelava se ficara feliz por encontrar outra pessoa especial, ou decepcionada por minha existência fazer com que Gabriel não mais o seja; há os dois tipos de gente, este com frequência tristemente maior do que a daquele. Disse, enfim, que ele também nasceu com um buraquinho na barriga, mas que deram ponto e se resolveu. Buraco não tenho outros que não aqueles com que normalmente se nasce; se mais houver, escapam aos olhos e são coisa minha. Cessaram as semelhanças, cessou a viagem, ela chamou o ponto e foi aonde quer que as pessoas vão depois que descem do ônibus.

Mas o pensamento em Gabriel demorou-se ainda comigo. Nada sei sobre ele além da forma como a vida decidiu marcá-lo de nascença; como ela o seguirá marcando, até que a margem oposta ao nascimento chegue, e ele abandone seu fluxo para seguir outros, ou seguir fluxo nenhum, não desconfio; contudo ele existe, tem nome e, pareceu-me, é criança ainda. Uma criança com uma mancha no braço, uma mãe que a chama especial, e, de repente, é motivo suficiente para que eu lhes tenha compaixão. Trouxe algum descanso à minha tarde o pensamento de um jantar, uma conversa no fim do dia, o comentário sobre um rapaz com uma mancha igual a sua, só que apenas uma; você tem mais e você é mais, meu filho, e estarei aqui para lhe dizer o mesmo amanhã e depois. É tudo que posso fazer por eles antes que os esqueça e siga pelo resto dos meus dias, como se eles não existissem.

A probabilidade é de que nunca conheça Gabriel. Por estas linhas lhe digo então que a vida daqueles com mancha vermelha no braço não vai fácil. Por algum motivo, há sempre quem exija mais de nós; em algum momento, ser manchado deixou de ser o bastante, e há um mundo de obrigações a serem atendidas até que se esgotem nossos anos. Haverá dias, acredite, em que parecerá não ser importante qualquer coisa que nos faça diferentes. Nesses dias, respire e lembre de sua mãe; lembre que existem aqueles para quem somos especiais tão somente por nascermos, como quer que tenhamos nascido. Não digo que seja solução, mas ajuda; pela tartaruga que carrego no braço, juro que ajuda.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Guardando estrelas.

Aprendi a singela imagem do cão que guardava as estrelas, em livro de mesmo nome. O animal, ao encarar desejoso o astro inalcançável, ilustra a vontade do impossível; não a entendo, contudo, de forma triste. Representa bem a subestimada ideia de que, mesmo no fracasso, resta a beleza de um céu estrelado.

Penso nas estrelas que guardei e que aprendi a perder. A realidade nos dá descanso de alguns anos, depois de nascermos, antes de tombar sobre nós desavisada; até então, vivemos infância sem noite, e o sol está tão perto quanto o rosto de nossa mãe. Não tarda, e percebemos a verdade cansada de que não se consegue tudo o que se quer, e mesmo o que se consegue nos vem mutilado. Era mais quando o quisemos, é menos agora que o temos.

Crescemos e aprendemos. Pessoas são pessoas, e estrelas são estrelas. Elas, combustão inatingível de gases, queimando sozinhas até o derradeiro estouro; nós, reação de possibilidades, inalcançáveis uns aos outros, fazendo luz qualquer que nos distingua, até cessarmos, em inaudível suspiro. Em comum, apenas a indiferença de um mesmo céu.

Confesso, contra tudo o que a razão aconselha, que não desisti de guardá-las, ainda que, com frequência sempre maior, me descuide e as perca de vista. A vida dos adultos é coisa trabalhosa; se lhe permitimos que siga abandonada, logo embrutece, ganha vícios de objetividade. Busca apenas o que é útil, e utilidade é um perigo: se consumida sem ressalvas, torna iguais as vidas e as encurta. Guardo estrelas, e aconselho a todos que as guardem - não raro, quando diante de nós parecer haver nada, que não impossibilidade, encará-las será alento, e alento será tudo o que precisamos.

Haverá dias brutos, sei que haverá. Dias em que esquecerei de olhar o céu, em que a vida me pesará a ponto de eu ter por suficiente o chão, e sua utilidade de me impedir que caia. Nesse dia, renunciarei a qualquer coisa que não possa tocar, a qualquer desejo que não for realizável, e acharei por bem assim ficar. Se assim me vir, meu amigo, peço que não desista de mim. Coisa certa é que o céu não esquece de nós; me conte de seus sonhos e me lembre dos meus. Se, ainda assim, me mantiver duro e pragmático, tenha paciência e me faça mais um favor. Peço, por gentileza, que guarde uma estrela pra mim.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Tina.

Hoje você morreu, minha irmã, minha cadelinha. Deixou a vida onde passaria toda ela, ao lado de nossa mãe. Eu, longe, agora eternamente longe, choro e sento para escrever qualquer coisa que apresse esta manhã infeliz. Em vão, bem sei. Gente sofre de muito, Tina; às vezes, não há carinho atrás da orelha que passe.

Você nos achou em uma tarde bonita de Olinda, há treze anos. Arranjo atrapalhado de mulher, duas crianças e cadela, que demos um jeito de fazer em família. Eu e Bruno, na noite em que você chegou, apesar de eufóricos, nos preocupávamos. Percebíamos, com algum desespero, que éramos responsáveis por uma vida, quando mal sabíamos das nossas. Pedaço de verdade. Apenas mais tarde, entenderíamos que, daquele momento em diante, também você tomava para si a tarefa de cuidar de dois garotos e seus incompreensíveis problemas. Gosto de pensar que fomos igualmente bem sucedidos, do alto de nossas limitações caninas e humanas.

Momentos de dor, por vezes, produzem as mais belas lembranças. Você tivera câncer, e se recuperava, em pós-operatório, de cirurgia que lhe cortara toda a extensão da barriga. Percebemos, pelo curativo, que você sangrava. Dra. Fernanda disse-nos que precisaria reabrir o corte, sem demora, para fazer cessar a hemorragia; não era possível aplicar anestesia, não havia quem auxiliasse o procedimento, e coube a mim segurá-la. Durante todo o tempo, enquanto a abriam, a recortavam, a costuravam, você não parou, por um momento, de olhar para mim. Eu lhe diria calma, que a dor existe e a dor passa, eu estou aqui e não há mal que lhe façam enquanto eu estiver. Não sei o que fiz para merecer tamanha confiança, dessas de que só cachorro é capaz, mas passei a vida tentando fazer justiça a ela. Nunca saberei se consegui.

Você retribuiu, talvez nem saiba o quanto, em sua sutileza canina. Imagino o quão confuso tenha sido conviver com humanos e suas dores, por esses anos todos. Não era por fome, não era por doença, não era por tédio; então por que os dias em que ficávamos sozinhos, em que não nos levantávamos para brincar, em que chorávamos por nenhum motivo aparente? Lembro-me que, em cada dia desses, você renunciava a suas vontades e sentava do meu lado, lamentando baixinho as dores que não eram suas. Não era necessário entender; eu sofria, e isso já era o bastante para que você sofresse também.

E eu fui embora. Você talvez nunca tenha entendido meus motivos; às vezes, Tina, nem mesmo eu os entendo. Mas fui embora, e não estava presente para segurá-la, olhá-la nos olhos e dizer que não, não havia quem mal lhe fizesse, quando você sofria seus últimos dias. Cá comigo, se organizo as ideias atrapalhadas pelo luto, concluo que não poderia ter sido diferente. Todavia, não me perdoo. O único amor que existe entre um homem e sua cadela é o incondicional. Até esta manhã, acreditava que bastaria tocar a campainha, ouvir suas unhas arranhando o chão para me receber, e toda ausência seria remediada. Agora, ouço a distância o silêncio da minha casa.

Hoje agradeci a nossa mãe por ter cuidado de você, desde que saí de casa. Percebo agora que nunca agradeci a você por ter cuidado dela. Eu bem sei a companhia que vocês fizeram uma a outra; de certa maneira, você foi mais filha do que eu nunca fui, e só lhe tenho gratidão por isso.

Você nos deixou em uma manhã de Recife, em uma manhã de São Paulo. Sua ausência toma diferentes formas, que levarei comigo por um bom pedaço da minha vida que segue. Você me conheceu criança; me deixou, e já sou homem, assim pareço. Mas é feito menino que recebo essa dor; é a primeira vez que a sinto sozinho, nesses treze anos, sem você para incondicionalmente dividi-la comigo. Me desculpa, Tina, você é tanto, eu sou apenas gente, e gente pode tão pouco. Tenho somente este texto e uma saudade para aprender.






sábado, 9 de maio de 2015

Ódios privados em espaços públicos.

E meu Recife é notícia, por razões mais e menos virtuosas. Arrisco um nanorresumo aos desavisados, e que me perdoem desde já as simplificações e ausências que sem dúvida cometerei*. Cais José Estelita, imenso terreno no centro histórico da cidade, há anos relegado ao esquecimento da paisagem. Foi ele adquirido, em leilão ilegal, por consórcio de poderosas empreiteiras e seus poderosos amigos. Também ilegalmente, aprovam o projeto para o local, cuja inteligência se resume em previsíveis treze torres e seus mais de trinta andares. Setores da sociedade civil organizam-se e ocupam o terreno, impedindo o início das obras; lá permanecem por quarenta dias, resultando na reanálise de partes do projeto pelas instâncias legais e administrativas. Um ano depois, ou semana passada, a cidade viveu inédita harmonia entre seus poderes: em sessão urgente e oculta, o projeto foi aprovado pela Câmara e sancionado, na mesma noite, pelo Executivo. Os mesmos setores civis reorganizaram-se em reação ao milagre legislativo e, até esta manhã, ocupavam a rua onde mora o prefeito, sua família e seus vizinhos. O destino do local resta incerto; sigamos. O parágrafo ficou maior e mais do gordo do que geralmente espero para estas linhas; não raro na vida, contudo, a verdade deve prevalecer em detrimento da estética.

Foi Milton Santos quem proferiu sentença; espaço geográfico é o conjunto da paisagem e da vida que a anima. Recife recebeu o raro presente de sua paisagem. Faz pensar, porém, a vida que se planeja impor-lhe, e o que ela diz sobre nós. Sobre as treze tristes torres - agora repita ligeiro; é difícil, mas deveria ser impossível - nada que eu escreva teria a qualidade do que já foi escrito. Hoje, contudo, quando os galpões do Estelita ainda resistem e o futuro nada é, que não horizonte de possibilidades, são outras construções, mais humanas e mesquinhas, que me perturbam este sábado tão bonito. A forma do diálogo e os modos do discurso. Pois o outro, assim como hoje ocorre em qualquer discussão relevante em cada cidade deste nosso judiado país, torna-se inimigo. Não há diferença que não seja desdenhada; não há conflito que não seja ofensa. Há exceções; exceções haverá sempre. Mas a voz que se destaca, no murmúrio das boas intenções, é uma de virtuosa raiva, gritada e cheia de certezas. A paisagem recifense se preenche de cinismo, e onde havia o cais, eu vejo apenas um muro.

"Mais amor, por favor". Bobagem. Amor é o que de humano mais se assemelha a milagre, e exigir que o sintamos por estranhos é delírio da mente dos loucos ou da soberba dos deuses. É necessário respeito e tolerância. A retórica impossível do amor generalizado, contudo, interessa tão somente às frases ligeiras das redes sociais; aos produtos da publicidade; à demagogia dos virtuosos. De resto, cria apenas a frustração de se exigir o improvável ao aparato humano; o que nos é mais natural é temer o diferente e odiar o que tememos. Surpresa alguma, portanto, o estado das coisas recifenses. O que desanima e alimenta o pessimismo, no entanto, é qualquer coisa de non sense na discussão travada; uma distorção de sentido que mistifica e confunde. Pois quero crer que, excluídos potenciais moradores e os titulares das contas que engordariam com o empreendimento, uma minoria de fato é a favor do projeto, tal qual apresentado. O que se discute, em boa parte das vezes em que se discute o Estelita, não é um projeto imobiliário, mas muito do que hoje nos faz uma nação dividida. A ilusão de ideologias partidárias, os interesses de poder individuais, em um espesso caldo de paranoia e desinformação. É diferença, é medo, é ódio. Cá comigo, brinco com a triste ideia de que, em ambientes políticos mais amenos, o recifense rejeitaria em uníssono o projeto, e o Novo Recife voltaria a ser apenas fantasia doente nas infelizes cabeças que o pariram.

Volto ao ódio, e faço dele mais um, entre tantos e melhores argumentos contrários ao projeto. Pois, se é verdade que teremos sempre nossos ódios privados, penso que até eles estarão melhores se cultivados em espaços públicos. Não há melhor remédio para o medo do que a convivência com o diferente; compartilhar com o outro, esse inacessível universo, o mesmo chão de uma mesma praça - e aqui me serve tanto a metáfora como a precisão de sentido - faz dele algo menos alienígena. Aos poucos, com um tanto de boa fé, a diferença se desmistifica, e onde havia medo, há respeito e aprendizado. E, permito-me o otimismo, sentiríamos de ódio apenas o mínimo essencial que nos faz humanos. Ou não; subamos as torres, vamos às armas, bastemo-nos em nós. Do outro, vejamos apenas a sombra que sobre eles projetamos. Triste fim; triste Recife. Ficaremos solitariamente chafurdando na inesgotável bacia de nossa própria estupidez.




*A seriedade da causa pede, e remeto-lhes links cujos conteúdos tratam da situação com a seriedade que me seria impossível: 
Página do grupo Direitos Urbanos: https://www.facebook.com/groups/direitosurbanos/
Site do Direitos Urbanos: https://direitosurbanos.wordpress.com/
Site do Movimento Ocupe Estelita: www.ocupeestelita.com.br
Propostas alternativas para o local: http://www.ocupeestelita.com.br/estudos-2/

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Resenha: Memórias, George F. Kennan.

*Texto originalmente publicado no E-Internacionalista.


As relações internacionais são o palco principal onde conflitam e cooperam as atuações estatais, guiadas por interesses que ultrapassam o tempo de vida das pessoas que as compõem, tornando-as, tantas vezes, invisíveis e quase dispensáveis. Não raro, contudo, há indivíduos cuja obra condiciona diretamente os rumos do Estado a que servem. No Brasil, é impossível dissociar os nomes de José Maria da Silva Paranhos, ou de Azeredo da Silveira, da atuação internacional brasileira de seus respectivos tempos. Os EUA do pós-Segunda Guerra, por sua vez, devem a George F. Kennan os moldes da diplomacia norte-americana durante os períodos mais críticos da Guerra Fria, principal idealizador da política de contenção que levaria, pode-se argumentar, à implosão soviética, quarenta anos mais tarde. Suas “Memórias” (Editora Topbooks, 2014, tradução de Vera Giambastiani e Antonio Sepulveda) são o mais preciso testemunho da gênese de suas ideias e de sua trajetória.
Costuma-se mencionar Kennan como expoente do realismo nas relações internacionais, linha teórica que privilegia em suas análises a atuação eminentemente estatal e a busca pelo equilíbrio de poder, em oposição às teses liberais de cooperação entre Estados e de ênfase às Organizações Internacionais. De fato, discordou do “caráter universal dos compromissos que implicava” a formulação da Doutrina Truman, em seu “dever de apoiar os povos livres que estejam resistindo à sujeição por minorias armadas ou pressões externas”, remontando à primazia americana primeiro idealizada por Woodrow Wilson. Para ele, o auxílio norte-americano deveria se dar após profunda e objetiva análise de cada caso, sopesada a variedade de fatores envolvidos e chances objetivas de eficácia; seria justificado no caso da Grécia, por exemplo, mas nunca em favor da China ou Iugoslávia. Da mesma forma, ainda que posteriormente viesse a rever sua posição original, suas ressalvas, à época da criação das Nações Unidas, representam precisa descrição do pensamento realista, pelo que interessa transcrevê-las na íntegra:
“Se pelo menos o status quo puder ser rigidamente preservado, não haverá mais guerras na Europa, e o problema europeu, pelo que toca ao nosso país, estaria resolvido. Esse raciocínio, que confunde sintomas com enfermidade, não é novo. Serviu de base para a Santa Aliança, para a Liga das Nações, e numerosas outras estruturas políticas criadas por nações que estavam, no momento, satisfeitas com a configuração internacional e não a desejavam diferente. Essas estruturas sempre serviram ao fim para o qual foram desenhadas – desde que os interesses das Grandes Potências lhes dessem substância e realidade. Quando essa situação mudava, no momento em que se tornava do interesse de uma ou outra das Grandes Potências alterar o status quo, nenhum tipo de estrutura erguida por tratado jamais foi obstáculo para essas alterações. A vida política internacional é algo orgânico, e não mecânico. Sua essência é a mudança; e os únicos sistemas para uma regulamentação da vida internacional que pode ser eficazes por longos períodos são os suficientemente sutis e flexíveis de modo a se ajustarem às constantes mudanças de interesse e poder dos diversos países interessados”.
Não surpreende, portanto, que algum dos mais contundentes elogios que a ele se dirigem venham das palavras de Henry Kissinger, para quem Kennan foi “um dos mais importantes, complexos, comoventes, desafiadores e exasperantes servidores americanos”. Lamenta, contudo, notar que, para a atual geração de internacionalistas americanos, Kennan tenha sido relegado a um vago passado, injustiça que passa a ser desfeita pela publicação da presente obra.
Tanto quanto os desdobramentos em High Politics de sua vida, a leitura de seumemoir é indispensável pela redescoberta do homem. Em prosa clara e elegante, bem retratada pela tradução brasileira, fica evidente a voracidade intelectual com a qual se debruçava Kennan por sobre qualquer matéria com que se envolvesse. Em sua longa estada na Rússia, nas décadas de 1930 e 40, aprendeu à perfeição o idioma, com intenso contato com a literatura e a historiografia do país, por meio do que adquiriu inédita intimidade, entre os estadistas americanos, com a natureza singular da política e do povo russos, registrada com poesia e afeto. Destacam-se, entre suas anotações, as impressões de um homem russo sobre o caráter nacional: “Quanto mais êxito tivermos, menos nos importará a opinião estrangeira. Isso é algo que vocês devem ter em mente sobre os russos. (…) Somente em condições desfavoráveis somos humildes, brandos e conciliatórios. Quando bem sucedidos, saiam da frente”.
A singular experiência russa foi responsável direta por aquelas que, provavelmente, foram suas principais contribuições para a política externa norte-americana: o “Longo Telegrama” e o “Artigo X”. O primeiro documento foi escrito em 1946, enquanto servia em Moscou. Em suas dezenove páginas de linhas apertadas, desconstruiu a noção então vigente de que o governo russo se encaminhava para um aggiornamento de suas relações para com o Ocidente, em direção a um posicionamento de colaboração. Pelo contrário, afirmou Kennan, Stalin implementava versão robusta da política externa centenária de desconfiança russa do mundo exterior, com a novidade de pretensões mundiais – ideológicas, econômicas e políticas – de origem bolchevique. O “Artigo X”, escrito anonimamente para a Foreign Affairs em 1947, desenvolveu o conteúdo do Longo Telegrama, dando-lhe contornos fatalistas e prescrevendo a postura norte-americana para os próximos anos, antecipando os moldes do que viria a ser a política de contenção contra a União Soviética. Ao contrário do que afirmam equivocadas interpretações, longe de defender a necessidade das ações militares que eventualmente ocorreram, Kennan previa que a URSS, se contida politicamente em determinada faixa continental, terminaria por sucumbir pelo peso de suas próprias instituições e modelo político.
George F. Kennan viveu para ver parcela significativa de suas previsões tornarem-se verdade; morreu em 2005, aos 101 anos. Com o fim da Guerra Fria, decretou o fim da própria relevância. Escreveu em seu diário: “Reconcilie-se com o inevitável; não mais lhe será permitido, na curta vida que lhe resta, fazer nada significativo”. As atuais circunstâncias, infelizmente, provam-no errado. Com tantos equívocos sendo cometidos, em nome da confusa e renovada divisão entre Rússia e o Ocidente, com tantas e lamentáveis consequências, Kennan faz-se, talvez tanto quanto antes, relevante e necessário.
KENNAN, G.F. Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 2014.

domingo, 3 de maio de 2015

Que venham os bisões.

Comigo ocorreu o costumeiro; comecei terapia por uma dor de cotovelo, mas logo ficou claro que os cinquenta minutos semanais seriam tomados de assalto por tudo o que diz respeito a minha relação com pai e mãe. O assunto me forçou as mais produtivas das minhas caras lágrimas, noventa reais por cada hora delas. Lembro-me de que deixei sessão particularmente dolorosa com a convicção de que "pai, se fode pouco o filho, é lucro", nas exatas palavras que me vieram. Não tanto tempo depois, e por coincidência, a mesma máxima me foi repetida na mais refinada forma de "pai, se não mata, aleija", no que gozei a rara glória de ser parte ativa na formação da sabedoria popular.

Mais do que outras revelações - "sua alergia a crustáceos vem do fato de você ter sido elogiado em excesso quando criança"; ou era o contrário? - surpreendeu-me constatar, a golpes de analista, que, dissipada a poeira das elucubrações racionais, guardava inegável raiva, primitiva e entranhada, por aqueles que me emprestaram vida e, desde então, fizeram o possível para melhorá-la. À época, pareceu-me justa a ideia de que a origem desse ódio residiria na descoberta de que, no final das contas, pais são feitos da mesma precária matéria deste que lhes escreve. Não somente de felicidade choram; não apenas por virtude erram; falham, e miseravelmente seguirão falhando, tão somente por sua venerável incompetência. O Rei Leão ensinou à minha geração inteira a ordinária verdade de que pais morrem. O que não nos foi ensinado, e só então me ficou claro, é que a manada de bisões os pisoteia muito antes do momento em que de fato os enterramos; nossos pais primeiro morrem quando os descobrimos pateticamente mortais.

Há muito que deixei o divã; desde então, troco com minhas dores solitárias tapas, às vezes de luva de pelica, outras de punho inglês. Sinto, contudo, que me foi deixado na cabeça um diminuto Freud, que laboriosamente remaneja o terreno infértil das minhas ideias, para, vez ou outra, aparecer com algo útil. E hoje repensei os bisões. Hoje, quando o homem que sou se faz cada vez mais real e menos mito aos meus próprios olhos; quando as frustrações não me são mais quimeras, mas apenas desagradáveis companhias; hoje, quando me descubro pateticamente mortal, e me aceito assim, de repente resta pouco daquela raiva. Vejo em meus pais indivíduos, e fascinantes, só por isso. Seus defeitos me ensinam sua história, sua história me ensina sobre mim. Sou o produto de uma de suas tantas possibilidades; tanto deles existe em mim e além de mim, e apenas comecei a aprender. Aquele ódio, mas que surpresa, era meu. Odiava-os por não ser quem eu queria ser. Que tragédia, o bisão era eu.

Agradeço, agradeço. Os anos não deixaram de vir, mas agradeço por não terem vindo tantos, antes da doce cumplicidade que hoje sinto. Somos miseravelmente falhos, mas é melhor o sermos juntos. Já fui parte deles; eles serão sempre partes de mim. Mas hoje não há ódio, que bom que não há ódio - hoje há apenas indivíduos, cometendo seus próprios erros e sucessos - atores em cenas diferentes de um mesmo espetáculo sobre a Terra. E que venham os bisões.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ateu safado.

Falemos sobre Biu. Severino - assim imagino ter nascido, excluindo-se, isso é, as fortes evidências de que tenha em verdade aparecido no planeta por geração espontânea, com uma tesoura na mão e um resmungo na boca - corta meu cabelo desde que nasci. Antes dos meus primeiros fios, cortou os últimos do meu avô e também corta os ainda respeitáveis fios do meu pai. Imagino que sete anos seja alguma forma de maior idade na ordem jurídica cabeleireira, pois assim que a atingi, Biu passou a, entre vestir o avental e a primeira tesourada, me colocar nas mãos a Playboy do mês. Desde então, desfrutamos pacífica jornada por entre edições com mais ou menos glamour, seguidas das perguntas retóricas intermitentes - "E essa aí, tu ia?"; "Eu ia, Biu." - até que, na vez última em que cortava meu cabelo, antes de me mudar para São Paulo, nossa relação sofreu sutil, mas inegável, abalo. E como não raro ocorre na história das relações entre duas pessoas, apenas uma delas o notou. Lia a entrevista de Sebastião Salgado, quando Biu quase toca o dedo ereto na revista: "Tu visse? Isso é um ateu safado!". 

Os momentos decisivos da aventura humana sobre a Terra costumam ganhar as páginas dos jornais; às vezes, contudo, eles tomam a forma igualmente destrutiva de uma menina gordinha da terceira série do Colégio Apoio. Eu propagava com orgulhosa desenvoltura entre meus pares o fato de não ter sido batizado, quando Laura se levanta, e, do fundo da sala, grita que "Daniel não foi batizado; Daniel é pagão!". Resisto, por questão de estilo, à justiça de escrever "pagão" inteiramente em letras maiúsculas, mas assim a senti, naquela tarde do ano de 1998. Na noite do mesmo dia, já chorava à minha mãe para que me batizasse. Mentes mais refinadas que a minha que elaborem a metáfora apropriada que o episódio contém sobre o poder de catequese da religião. Batizado não fui, e virgem de igreja continuo até hoje, mas naquele dia senti, pela primeira vez, que havia riscos no mundo sem deus.

De volta a Biu, a mim, a Sebastião Salgado. Minha reação, a tive por sensata, mas hoje reconheço a covardia: ri e concordei. Covarde porque foi daqueles momentos em que o silêncio nada faz, que não reforçar a falsa necessidade de um segredo. Não digo que devesse arrancar o avental, tomar-lhe a tesoura e duelar com meu cabeleireiro pela existência da moral em um mundo secular; mas sinto que devia ter ali me revelado, ter humanizado o ateu diante de Biu, tê-lo feito encarar o fato irrecusável de que sobre aquele chão caíram por duas décadas meus cabelos pagãos, e não houve buraco que se abrisse, levando ao inferno as tesouras, os cremes e o cabeleireiro cúmplices de tamanho ateísmo. Naquele momento, senti o mais próximo que minha vida privilegiada me permite sentir dessa vergonha disfarçada de que sofrem minorias. A tentação de calar para se misturar, a vontade de fazer com que as diferenças se diluam em caldo insosso de status quo e silêncio.

Ciente do quão mais suave e mesquinho é meu segredo, em comparação a tantos que têm a própria existência ameaçada, apenas por romper o silêncio, decidi também rompê-lo sem ressalvas. Desde então, sob o inafastável risco de soar chato e repetitivo, reafirmo minha inesgotável admiração pelos primatas refinados que somos, por tudo que criamos a partir de nosso litro e meio de córtex cerebral, que igualmente nos limita e nos dá a certeza de que há coisas em nossa vã realidade que, simples assim, nunca entenderemos, diante de todo e qualquer um que defenda a necessidade moral de enfiar divindade qualquer nas inevitáveis lacunas de nosso entendimento. Ou, como muito bem respondeu o Marquês de Laplace a Napoleão, quando este o inquiriu sobre a ausência de deus em sua proposta para o Sistema Solar: "Excelência, o modelo funciona sem essa hipótese". Naturalmente, com cortesia e eloquência, mas eternamente orgulhoso da minha condição de ateu safado. Perdoe-me, Biu.


segunda-feira, 27 de abril de 2015

Sorte com os docinhos.

Ultimamente, tenho me interessado sobre a história da família, esse jogo de erros secular cujo resultado parcial sou eu e minhas circunstâncias. Fatos interessantes sobre os mortos me foram desvelados; meu bisa Johann (vovô João), suíço, partiu de casa para o Canadá aos quatorze, brigado com o pai abastado, deixando para trás apenas a promessa de voltar e buscar minha vó. Voltou e buscou-a, cruzaram juntos o Atlântico para a São Paulo dos anos vinte, vovó Maria levando na barriga a filha de outro homem. Outras tantas historietas surgiriam, mais ou menos carregadas em seus tons épicos. Por esses dias, contudo, tenho estado mais curioso sobre as perspectivas dos vivos, enquanto assim ainda os tenho.

Nesse domingo, perguntei a minha vó sobre como havia sido o casamento dela. Afora outros dados banais - bairro, nome da igreja - seu único comentário foi o de que teria dado "sorte com os docinhos". Ela "nem conhecia as meninas que faziam, chamou-as de última hora, mas todo mundo elogiou". Sorri, soltei qualquer condescendência, e estava pronto para descartar o absurdo como coisa de velho; embebido em meus vinte e seis anos, com tantos amigos e amigas vivendo a sucessão de eventos que leva ao casório, pareceu-me um disparate ter tão somente o bem-casado como lembrança notável da festa. Para esta mente já não tão jovem, mas com a perspectiva de ter o maior naco de vida a ser ainda desfrutado, há a urgência de catarse, a necessidade do gatilho glorioso que inaugure um futuro promissor.

E hoje os docinhos do casamento da minha vó visitam-me novamente, em formas mais depuradas. Arrisquei um vislumbre, essa coisa rara, em seus pensamentos de velha senhora. O que lhe resta daquele dia? Seu noivo, pobre meu avô, já há muito foi extinto; os convidados e convidadas, que imagino terem tomado de assalto a pista de dança por toda uma noite, ou já expiraram, ou decaem aos poucos na melancolia privada da velhice. As fotos do dia, de amareladas que estão, mal conservam seus contornos, fazendo dos presentes um jogo de adivinha. Os filhos que viriam daquela feliz parelha há anos deixaram a casa para viver suas próprias glórias; por felicidade, estão ainda todos a vivê-las. Reconheço minha estreiteza e faço justiça a minha vó; parece-me que a única lembrança daquele dia que não vem acompanhada de pungente ausência seja mesmo a da sorte que teve com os docinhos, e dos elogios que por eles recebeu. E está bom demais para um almoço de domingo, vó.

Penso em mim. Penso em nós, que arriscamos os primeiros dedos por sobre uma vida que passamos, cada vez com segurança maior, a chamar de nossa. Tantos são os planos, tantas são as lutas e os sentidos a que lhes atribuímos. Vejo-nos casando, vejo-nos preparando nossas apostas para um futuro que será, assim esperamos, o que fizermos dele. E, ainda que a visão me encha o peito de feliz dormência, não posso evitar sentir também os primeiros contornos de tristeza pelos dias que virão. Pois, por mais que nos preparemos, com mais frequência do que gostaríamos, o aleatório nos mostrará a face cruel dos dados, e boas lembranças terão ausências que as acompanhem.

Na noite de hoje, portanto, nada de sonhos grandiosos, de grandes casamentos, de histórias de amor intercontinentais. Hoje eu desejo apenas que tenhamos sorte com os docinhos.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Tormentos eternos me ofendem.

Experimento determinado incômodo de forma recorrente quando discuto os limites da liberdade de expressão para sátiras (e ofensas, mesmo) a crenças religiosas. Os meus queridos e crentes interlocutores vão a grandes distâncias retóricas para justificar que alguém não possa, a título de exemplo, chamar o deus cristão um grandessíssimo cretino, mas sequer questionam a liberdade de professar um credo segundo o qual euzinho, se não mudar minhas convicções em vida, ao fim dela, passarei a eternidade - eternidade! - em lugar, no mínimo, desagradável - e que é descrito, com frequência alarmante, como algo envolvendo muito fogo. Ou, nas palavras divinamente inspiradas de Matheus, sobre eu e meu grupelho de ímpios: "irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.” (26:46).
Tormento (ou punição, de acordo com outras traduções) dificilmente é uma palavra que alguma interpretação faça soar bem - seguida de "eterno", então, é algo com o que sequer a Coreia do Norte consegue ameaçar seus prisioneiros (toda a população do país, diga-se); esses coitados têm a morte, ao menos, para livrá-los do sofrimento que lhes foi imposto (e se alguém vier me falar de 'escolha', eu desenho um Maomé sodomita, assino com o nome do sujeito e publico na internet). Temos aí exemplo acabado do sistema penal mais cruel e inflexível de que se teve notícia na história: um único julgamento; sem apelação (a não ser que você seja o Zé Grilo); e condenação eterna.
Será que não ocorre aos mais crédulos o quão ofensivo isso pode soar a mim ou aos demais que negam jesus, deus, a trindade inteira, os evangelhos e a transubstanciação (ou vampirismo) em suas vidas? Que a maior parte da população acredita realmente que, apenas por fazê-lo,mesmo sendo pessoas absolutamente boas, depois de morrermos, passaremos uma eternidade em punição (mais ainda: como vocês ficam bem com isso?)?
Cá comigo, "acho isso tudo uma grande piada e um tanto quanto perigoso" e nunca vou questionar a liberdade de alguém proclamar folclore qualquer em que acredite, mesmo que ele carregue consigo uma sentença de pós-morte em meu nome. Mas fica a sugestão de ideia aos crédulos que têm considerado a hipótese de limites a ofensas contra religiões quaisquer: o quão ofensiva pode ser, em essência, essa mesma crença.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo

Em oposição, tudo o que amo e o que eu mais desprezo. De um lado, liberdade de expressão, inteligência, crítica, ironia, secularismo, iconoclastia, arte; de outro, fundamentalismo religioso, intolerância, totalitarismo, violência, estupidez, misticismo.
Que se desenhem Jesus travesti, Maomé sodomita, Yahweh poliamante - ou o que quer que os respectivos crentes, do fundo de sua incompreensão, tenham por ofensivo. Indignação e revolta são legítimas; que cada um exerça suas sensibilidades da forma que preferir. Mas ofensa pessoal nenhuma, fundamentada em sátira a credo religioso, deve provocar por reação a mínima restrição do direito à liberdade de expressão e de imprensa. Boicotes, protestos, manifestações, até (suspiro) ações judiciais; vale tudo.
Mas nunca - nunca - uma reação violenta é justificada. Nunca é o caso de que o autor da sátira deveria ter sido "mais prudente". Nunca o veículo de imprensa deve se abster de publicar material qualquer, por medo da reação de fanáticos. Nunca a liberdade de expressão, uma das mais admiráveis e preciosas obras construídas, a grande custo, pela humanidade, deve ser tolhida, em nome das sensibilidades de uma ideologia que se crê única, total, absoluta.
Cabe às nações do mundo condenarem, em uma só voz, os ataques desta quarta-feira; devem elas, civilizações ocidentais, islâmicas, ortodoxas, africanas, asiáticas, analisarem de forma multilateral a natureza e os desdobramentos da questão, para, simultaneamente, retaliarem severamente os agentes mais superficiais dessa espécie de violência e elaborarem ações estruturais para solucionar suas causas mais profundas.
Cabe a nós, as pessoas pequenas, nunca nos submetermos à restrição do pensamento de qualquer natureza; sermos prudentes, mas não cedermos ao medo do radical; sermos radicais na defesa da expressão do pensamento, qualquer que ele seja, cientes da responsabilidade por tudo que é expresso; nunca sermos condescendentes em face de violências desse tipo, nunca justificarmos, nunca levantarmos poréns.

A defesa do pensamento, ela sim, é universal, absoluta, total.
Abaixo, direto do forno, a charge de um maomé sereno e simpático.