sexta-feira, 17 de julho de 2015

Gabriel e a tartaruga.

Cantava baixinho London, London no ônibus quando perguntaram sobre a mancha que tenho na mão, se eu a tenho desde que nasci. Sentava ao meu lado, era mulher de seus cinquenta anos. A mancha em questão é vermelha e, quão mais velho for quem a veja, menos se parece com uma tartaruga - para minhas primas, ela chama-se Dani e esconde-se dentro do casco quando esfregamos o dedo sobre ela. E sim, senhora, tenho-a desde que apareci em vida. Perguntou-me então se tinha outras semelhantes pelo braço - São Paulo fria, manga longa. Respondi que não e me preparava para jurar até a morte que era saudável, que mesmo se fosse doença, a probabilidade seria de não ser contagiosa, mas que ela poderia mudar de lugar se preferisse; eu não me ofenderia. Visitaria a dermatologista na mesma semana, pedindo que me salvasse, mas não me ofenderia.

Restou sentada minha companhia. Disse-me que seu filho Gabriel tinha manchas iguais, e em maior número, espalhadas pelo braço. Diz a Gabriel que elas o fazem especial, contou-me, sem deixar de olhar minha tartaruga. Sua expressão não revelava se ficara feliz por encontrar outra pessoa especial, ou decepcionada por minha existência fazer com que Gabriel não mais o seja; há os dois tipos de gente, este com frequência tristemente maior do que a daquele. Disse, enfim, que ele também nasceu com um buraquinho na barriga, mas que deram ponto e se resolveu. Buraco não tenho outros que não aqueles com que normalmente se nasce; se mais houver, escapam aos olhos e são coisa minha. Cessaram as semelhanças, cessou a viagem, ela chamou o ponto e foi aonde quer que as pessoas vão depois que descem do ônibus.

Mas o pensamento em Gabriel demorou-se ainda comigo. Nada sei sobre ele além da forma como a vida decidiu marcá-lo de nascença; como ela o seguirá marcando, até que a margem oposta ao nascimento chegue, e ele abandone seu fluxo para seguir outros, ou seguir fluxo nenhum, não desconfio; contudo ele existe, tem nome e, pareceu-me, é criança ainda. Uma criança com uma mancha no braço, uma mãe que a chama especial, e, de repente, é motivo suficiente para que eu lhes tenha compaixão. Trouxe algum descanso à minha tarde o pensamento de um jantar, uma conversa no fim do dia, o comentário sobre um rapaz com uma mancha igual a sua, só que apenas uma; você tem mais e você é mais, meu filho, e estarei aqui para lhe dizer o mesmo amanhã e depois. É tudo que posso fazer por eles antes que os esqueça e siga pelo resto dos meus dias, como se eles não existissem.

A probabilidade é de que nunca conheça Gabriel. Por estas linhas lhe digo então que a vida daqueles com mancha vermelha no braço não vai fácil. Por algum motivo, há sempre quem exija mais de nós; em algum momento, ser manchado deixou de ser o bastante, e há um mundo de obrigações a serem atendidas até que se esgotem nossos anos. Haverá dias, acredite, em que parecerá não ser importante qualquer coisa que nos faça diferentes. Nesses dias, respire e lembre de sua mãe; lembre que existem aqueles para quem somos especiais tão somente por nascermos, como quer que tenhamos nascido. Não digo que seja solução, mas ajuda; pela tartaruga que carrego no braço, juro que ajuda.

Um comentário:

  1. Bela crônica.
    Mesmos nos seus dias mais escuros, sempre haverá alguém que lhe sabe especial simplesmente por você ter nascido.
    Mas especial mesmo, serão as marcas que você imprimirá ao longo de sua vida.

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