E meu Recife é notícia, por razões mais e menos virtuosas. Arrisco um nanorresumo aos desavisados, e que me perdoem desde já as simplificações e ausências que sem dúvida cometerei*. Cais José Estelita, imenso terreno no centro histórico da cidade, há anos relegado ao esquecimento da paisagem. Foi ele adquirido, em leilão ilegal, por consórcio de poderosas empreiteiras e seus poderosos amigos. Também ilegalmente, aprovam o projeto para o local, cuja inteligência se resume em previsíveis treze torres e seus mais de trinta andares. Setores da sociedade civil organizam-se e ocupam o terreno, impedindo o início das obras; lá permanecem por quarenta dias, resultando na reanálise de partes do projeto pelas instâncias legais e administrativas. Um ano depois, ou semana passada, a cidade viveu inédita harmonia entre seus poderes: em sessão urgente e oculta, o projeto foi aprovado pela Câmara e sancionado, na mesma noite, pelo Executivo. Os mesmos setores civis reorganizaram-se em reação ao milagre legislativo e, até esta manhã, ocupavam a rua onde mora o prefeito, sua família e seus vizinhos. O destino do local resta incerto; sigamos. O parágrafo ficou maior e mais do gordo do que geralmente espero para estas linhas; não raro na vida, contudo, a verdade deve prevalecer em detrimento da estética.
Foi Milton Santos quem proferiu sentença; espaço geográfico é o conjunto da paisagem e da vida que a anima. Recife recebeu o raro presente de sua paisagem. Faz pensar, porém, a vida que se planeja impor-lhe, e o que ela diz sobre nós. Sobre as treze tristes torres - agora repita ligeiro; é difícil, mas deveria ser impossível - nada que eu escreva teria a qualidade do que já foi escrito. Hoje, contudo, quando os galpões do Estelita ainda resistem e o futuro nada é, que não horizonte de possibilidades, são outras construções, mais humanas e mesquinhas, que me perturbam este sábado tão bonito. A forma do diálogo e os modos do discurso. Pois o outro, assim como hoje ocorre em qualquer discussão relevante em cada cidade deste nosso judiado país, torna-se inimigo. Não há diferença que não seja desdenhada; não há conflito que não seja ofensa. Há exceções; exceções haverá sempre. Mas a voz que se destaca, no murmúrio das boas intenções, é uma de virtuosa raiva, gritada e cheia de certezas. A paisagem recifense se preenche de cinismo, e onde havia o cais, eu vejo apenas um muro.
"Mais amor, por favor". Bobagem. Amor é o que de humano mais se assemelha a milagre, e exigir que o sintamos por estranhos é delírio da mente dos loucos ou da soberba dos deuses. É necessário respeito e tolerância. A retórica impossível do amor generalizado, contudo, interessa tão somente às frases ligeiras das redes sociais; aos produtos da publicidade; à demagogia dos virtuosos. De resto, cria apenas a frustração de se exigir o improvável ao aparato humano; o que nos é mais natural é temer o diferente e odiar o que tememos. Surpresa alguma, portanto, o estado das coisas recifenses. O que desanima e alimenta o pessimismo, no entanto, é qualquer coisa de non sense na discussão travada; uma distorção de sentido que mistifica e confunde. Pois quero crer que, excluídos potenciais moradores e os titulares das contas que engordariam com o empreendimento, uma minoria de fato é a favor do projeto, tal qual apresentado. O que se discute, em boa parte das vezes em que se discute o Estelita, não é um projeto imobiliário, mas muito do que hoje nos faz uma nação dividida. A ilusão de ideologias partidárias, os interesses de poder individuais, em um espesso caldo de paranoia e desinformação. É diferença, é medo, é ódio. Cá comigo, brinco com a triste ideia de que, em ambientes políticos mais amenos, o recifense rejeitaria em uníssono o projeto, e o Novo Recife voltaria a ser apenas fantasia doente nas infelizes cabeças que o pariram.
Volto ao ódio, e faço dele mais um, entre tantos e melhores argumentos contrários ao projeto. Pois, se é verdade que teremos sempre nossos ódios privados, penso que até eles estarão melhores se cultivados em espaços públicos. Não há melhor remédio para o medo do que a convivência com o diferente; compartilhar com o outro, esse inacessível universo, o mesmo chão de uma mesma praça - e aqui me serve tanto a metáfora como a precisão de sentido - faz dele algo menos alienígena. Aos poucos, com um tanto de boa fé, a diferença se desmistifica, e onde havia medo, há respeito e aprendizado. E, permito-me o otimismo, sentiríamos de ódio apenas o mínimo essencial que nos faz humanos. Ou não; subamos as torres, vamos às armas, bastemo-nos em nós. Do outro, vejamos apenas a sombra que sobre eles projetamos. Triste fim; triste Recife. Ficaremos solitariamente chafurdando na inesgotável bacia de nossa própria estupidez.
*A seriedade da causa pede, e remeto-lhes links cujos conteúdos tratam da situação com a seriedade que me seria impossível:
Página do grupo Direitos Urbanos: https://www.facebook.com/groups/direitosurbanos/
Site do Direitos Urbanos: https://direitosurbanos.wordpress.com/
Site do Movimento Ocupe Estelita: www.ocupeestelita.com.br
Propostas alternativas para o local: http://www.ocupeestelita.com.br/estudos-2/
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