quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ateu safado.

Falemos sobre Biu. Severino - assim imagino ter nascido, excluindo-se, isso é, as fortes evidências de que tenha em verdade aparecido no planeta por geração espontânea, com uma tesoura na mão e um resmungo na boca - corta meu cabelo desde que nasci. Antes dos meus primeiros fios, cortou os últimos do meu avô e também corta os ainda respeitáveis fios do meu pai. Imagino que sete anos seja alguma forma de maior idade na ordem jurídica cabeleireira, pois assim que a atingi, Biu passou a, entre vestir o avental e a primeira tesourada, me colocar nas mãos a Playboy do mês. Desde então, desfrutamos pacífica jornada por entre edições com mais ou menos glamour, seguidas das perguntas retóricas intermitentes - "E essa aí, tu ia?"; "Eu ia, Biu." - até que, na vez última em que cortava meu cabelo, antes de me mudar para São Paulo, nossa relação sofreu sutil, mas inegável, abalo. E como não raro ocorre na história das relações entre duas pessoas, apenas uma delas o notou. Lia a entrevista de Sebastião Salgado, quando Biu quase toca o dedo ereto na revista: "Tu visse? Isso é um ateu safado!". 

Os momentos decisivos da aventura humana sobre a Terra costumam ganhar as páginas dos jornais; às vezes, contudo, eles tomam a forma igualmente destrutiva de uma menina gordinha da terceira série do Colégio Apoio. Eu propagava com orgulhosa desenvoltura entre meus pares o fato de não ter sido batizado, quando Laura se levanta, e, do fundo da sala, grita que "Daniel não foi batizado; Daniel é pagão!". Resisto, por questão de estilo, à justiça de escrever "pagão" inteiramente em letras maiúsculas, mas assim a senti, naquela tarde do ano de 1998. Na noite do mesmo dia, já chorava à minha mãe para que me batizasse. Mentes mais refinadas que a minha que elaborem a metáfora apropriada que o episódio contém sobre o poder de catequese da religião. Batizado não fui, e virgem de igreja continuo até hoje, mas naquele dia senti, pela primeira vez, que havia riscos no mundo sem deus.

De volta a Biu, a mim, a Sebastião Salgado. Minha reação, a tive por sensata, mas hoje reconheço a covardia: ri e concordei. Covarde porque foi daqueles momentos em que o silêncio nada faz, que não reforçar a falsa necessidade de um segredo. Não digo que devesse arrancar o avental, tomar-lhe a tesoura e duelar com meu cabeleireiro pela existência da moral em um mundo secular; mas sinto que devia ter ali me revelado, ter humanizado o ateu diante de Biu, tê-lo feito encarar o fato irrecusável de que sobre aquele chão caíram por duas décadas meus cabelos pagãos, e não houve buraco que se abrisse, levando ao inferno as tesouras, os cremes e o cabeleireiro cúmplices de tamanho ateísmo. Naquele momento, senti o mais próximo que minha vida privilegiada me permite sentir dessa vergonha disfarçada de que sofrem minorias. A tentação de calar para se misturar, a vontade de fazer com que as diferenças se diluam em caldo insosso de status quo e silêncio.

Ciente do quão mais suave e mesquinho é meu segredo, em comparação a tantos que têm a própria existência ameaçada, apenas por romper o silêncio, decidi também rompê-lo sem ressalvas. Desde então, sob o inafastável risco de soar chato e repetitivo, reafirmo minha inesgotável admiração pelos primatas refinados que somos, por tudo que criamos a partir de nosso litro e meio de córtex cerebral, que igualmente nos limita e nos dá a certeza de que há coisas em nossa vã realidade que, simples assim, nunca entenderemos, diante de todo e qualquer um que defenda a necessidade moral de enfiar divindade qualquer nas inevitáveis lacunas de nosso entendimento. Ou, como muito bem respondeu o Marquês de Laplace a Napoleão, quando este o inquiriu sobre a ausência de deus em sua proposta para o Sistema Solar: "Excelência, o modelo funciona sem essa hipótese". Naturalmente, com cortesia e eloquência, mas eternamente orgulhoso da minha condição de ateu safado. Perdoe-me, Biu.


3 comentários:

  1. Visitei teu blog (?).
    Dani, o que é um ateu safado?

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    1. Olá, Andréa (: Olha, não saberia dizer, você teria que perguntar a Biu, mas sei que me foi dito de forma pejorativa, então peguei pra mim e vesti com orgulho.

      Um beijo, obrigado pela visita!

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    2. A falta de deus é uma metáfora para a ausência de moral. Safado é a própria amoralidade.
      Ateu safado é um comunista.
      Mas comunista é vanguarda.
      Virou sinônimo de progressista. De repente, é ecologista. E, assim, materialista, é a negação de deus porque dele não precisamos para explicar aquilo que ignoramos.
      Sigamos ignorantes, como Biu. Não há nada de errado nisso...

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