quarta-feira, 3 de junho de 2015

Tina.

Hoje você morreu, minha irmã, minha cadelinha. Deixou a vida onde passaria toda ela, ao lado de nossa mãe. Eu, longe, agora eternamente longe, choro e sento para escrever qualquer coisa que apresse esta manhã infeliz. Em vão, bem sei. Gente sofre de muito, Tina; às vezes, não há carinho atrás da orelha que passe.

Você nos achou em uma tarde bonita de Olinda, há treze anos. Arranjo atrapalhado de mulher, duas crianças e cadela, que demos um jeito de fazer em família. Eu e Bruno, na noite em que você chegou, apesar de eufóricos, nos preocupávamos. Percebíamos, com algum desespero, que éramos responsáveis por uma vida, quando mal sabíamos das nossas. Pedaço de verdade. Apenas mais tarde, entenderíamos que, daquele momento em diante, também você tomava para si a tarefa de cuidar de dois garotos e seus incompreensíveis problemas. Gosto de pensar que fomos igualmente bem sucedidos, do alto de nossas limitações caninas e humanas.

Momentos de dor, por vezes, produzem as mais belas lembranças. Você tivera câncer, e se recuperava, em pós-operatório, de cirurgia que lhe cortara toda a extensão da barriga. Percebemos, pelo curativo, que você sangrava. Dra. Fernanda disse-nos que precisaria reabrir o corte, sem demora, para fazer cessar a hemorragia; não era possível aplicar anestesia, não havia quem auxiliasse o procedimento, e coube a mim segurá-la. Durante todo o tempo, enquanto a abriam, a recortavam, a costuravam, você não parou, por um momento, de olhar para mim. Eu lhe diria calma, que a dor existe e a dor passa, eu estou aqui e não há mal que lhe façam enquanto eu estiver. Não sei o que fiz para merecer tamanha confiança, dessas de que só cachorro é capaz, mas passei a vida tentando fazer justiça a ela. Nunca saberei se consegui.

Você retribuiu, talvez nem saiba o quanto, em sua sutileza canina. Imagino o quão confuso tenha sido conviver com humanos e suas dores, por esses anos todos. Não era por fome, não era por doença, não era por tédio; então por que os dias em que ficávamos sozinhos, em que não nos levantávamos para brincar, em que chorávamos por nenhum motivo aparente? Lembro-me que, em cada dia desses, você renunciava a suas vontades e sentava do meu lado, lamentando baixinho as dores que não eram suas. Não era necessário entender; eu sofria, e isso já era o bastante para que você sofresse também.

E eu fui embora. Você talvez nunca tenha entendido meus motivos; às vezes, Tina, nem mesmo eu os entendo. Mas fui embora, e não estava presente para segurá-la, olhá-la nos olhos e dizer que não, não havia quem mal lhe fizesse, quando você sofria seus últimos dias. Cá comigo, se organizo as ideias atrapalhadas pelo luto, concluo que não poderia ter sido diferente. Todavia, não me perdoo. O único amor que existe entre um homem e sua cadela é o incondicional. Até esta manhã, acreditava que bastaria tocar a campainha, ouvir suas unhas arranhando o chão para me receber, e toda ausência seria remediada. Agora, ouço a distância o silêncio da minha casa.

Hoje agradeci a nossa mãe por ter cuidado de você, desde que saí de casa. Percebo agora que nunca agradeci a você por ter cuidado dela. Eu bem sei a companhia que vocês fizeram uma a outra; de certa maneira, você foi mais filha do que eu nunca fui, e só lhe tenho gratidão por isso.

Você nos deixou em uma manhã de Recife, em uma manhã de São Paulo. Sua ausência toma diferentes formas, que levarei comigo por um bom pedaço da minha vida que segue. Você me conheceu criança; me deixou, e já sou homem, assim pareço. Mas é feito menino que recebo essa dor; é a primeira vez que a sinto sozinho, nesses treze anos, sem você para incondicionalmente dividi-la comigo. Me desculpa, Tina, você é tanto, eu sou apenas gente, e gente pode tão pouco. Tenho somente este texto e uma saudade para aprender.






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