domingo, 3 de maio de 2015

Que venham os bisões.

Comigo ocorreu o costumeiro; comecei terapia por uma dor de cotovelo, mas logo ficou claro que os cinquenta minutos semanais seriam tomados de assalto por tudo o que diz respeito a minha relação com pai e mãe. O assunto me forçou as mais produtivas das minhas caras lágrimas, noventa reais por cada hora delas. Lembro-me de que deixei sessão particularmente dolorosa com a convicção de que "pai, se fode pouco o filho, é lucro", nas exatas palavras que me vieram. Não tanto tempo depois, e por coincidência, a mesma máxima me foi repetida na mais refinada forma de "pai, se não mata, aleija", no que gozei a rara glória de ser parte ativa na formação da sabedoria popular.

Mais do que outras revelações - "sua alergia a crustáceos vem do fato de você ter sido elogiado em excesso quando criança"; ou era o contrário? - surpreendeu-me constatar, a golpes de analista, que, dissipada a poeira das elucubrações racionais, guardava inegável raiva, primitiva e entranhada, por aqueles que me emprestaram vida e, desde então, fizeram o possível para melhorá-la. À época, pareceu-me justa a ideia de que a origem desse ódio residiria na descoberta de que, no final das contas, pais são feitos da mesma precária matéria deste que lhes escreve. Não somente de felicidade choram; não apenas por virtude erram; falham, e miseravelmente seguirão falhando, tão somente por sua venerável incompetência. O Rei Leão ensinou à minha geração inteira a ordinária verdade de que pais morrem. O que não nos foi ensinado, e só então me ficou claro, é que a manada de bisões os pisoteia muito antes do momento em que de fato os enterramos; nossos pais primeiro morrem quando os descobrimos pateticamente mortais.

Há muito que deixei o divã; desde então, troco com minhas dores solitárias tapas, às vezes de luva de pelica, outras de punho inglês. Sinto, contudo, que me foi deixado na cabeça um diminuto Freud, que laboriosamente remaneja o terreno infértil das minhas ideias, para, vez ou outra, aparecer com algo útil. E hoje repensei os bisões. Hoje, quando o homem que sou se faz cada vez mais real e menos mito aos meus próprios olhos; quando as frustrações não me são mais quimeras, mas apenas desagradáveis companhias; hoje, quando me descubro pateticamente mortal, e me aceito assim, de repente resta pouco daquela raiva. Vejo em meus pais indivíduos, e fascinantes, só por isso. Seus defeitos me ensinam sua história, sua história me ensina sobre mim. Sou o produto de uma de suas tantas possibilidades; tanto deles existe em mim e além de mim, e apenas comecei a aprender. Aquele ódio, mas que surpresa, era meu. Odiava-os por não ser quem eu queria ser. Que tragédia, o bisão era eu.

Agradeço, agradeço. Os anos não deixaram de vir, mas agradeço por não terem vindo tantos, antes da doce cumplicidade que hoje sinto. Somos miseravelmente falhos, mas é melhor o sermos juntos. Já fui parte deles; eles serão sempre partes de mim. Mas hoje não há ódio, que bom que não há ódio - hoje há apenas indivíduos, cometendo seus próprios erros e sucessos - atores em cenas diferentes de um mesmo espetáculo sobre a Terra. E que venham os bisões.

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