quinta-feira, 25 de maio de 2017

Eu, só que menos [conto]

Curioso como o cabelo de Vanessa pouco mudou desde o colégio. Parecia-me autêntico, embora não sempre bonito. Suas formas e texturas acompanhavam estímulo nunca revelado; achava-o particularmente especial em quintas-feiras de maio. Afora o tigrado dos fios brancos, está igual. Tenho vontade de tocá-los, mas não vou.

Matheus parece-me feliz, ainda que com a resignação de quem sobrevive deformado a acidente que deveria ter sido mortal. Não sei o que aconteceu, mas deve ter acontecido comigo também. Vejo-o bebendo cerveja e sinto o gosto daquele ano. Tínhamos opiniões e superpoderes; salvamos o mundo algumas vezes, o mundo nunca agradeceu.

Eu odiava Vicente, odiava que tudo o que dizia era irrelevância mentolada. Odiei como enfeitiçou-me certo dia e, por duas horas, concordei com a agradável estupidez que me dedicou. Ele veste blazer riscado que lhe define o torso provavelmente bonito quando nu. Vicente foi tão sábio, eu o odeio; a vida paga bom dinheiro por irrelevâncias mentoladas.

O mamilo de Manoela era rosado, quase que indistinto do resto da pele. Quando se animava, ele apontava para mim; eu me sentia flagrado, irremediavelmente feliz. Ela foi minha primeira menina; eu, o segundo menino dela. Nossa inauguração foi doce e apologética; Manoela contava imaculada as mais úteis mentiras. Nesta noite, ela sorri; talvez nunca tenha deixado de utilmente mentir. O tempo faz do hábito gorda verdade. Pergunto-me que cor tem hoje o mamilo de Manoela.

Ouço a voz partida de Maria Elisa. Sinto-me mal sobre como fazia o possível para evitá-la. Ela hesitava antes de dizer bom dia, por medo de falhar; insegurança cheira a podre, mantinha-me longe e desviava. Não me arrependo, contudo; verdade é que hoje faria o mesmo. Maria Elisa ofendia-me por compartilharmos a mesma espécie. Eu tinha medo do tanto que podemos nos tornar. Ainda tenho medo de ser qualquer coisa parecida com o que lembro de Maria Elisa.

Luiz afastou-se quando nasceu o filho caçula; senti-me decepcionado por razões esfumaçadas. Lembro-me de admirar a confiança com que pisava a vida e anunciava que o tempo era nosso; se um dia realmente o foi, foi-nos roubado por sua filha, criança brilhante e cheia de arestas. O menino parece-me um tanto estúpido, mas devo ainda estar amargo.

Ali vai Débora, mas sobre Débora prefiro não falar.

Eles estão aqui, vejo-os reunidos em elegante procissão. Tropeçam autenticamente sobre feridas de guerra e avançam, parecem avançar; entretanto não me reconhecem. Sorrio e aceno, tento falar meu nome, mas qual meu nome hoje? Passam por mim desavisados; sobre mim, através de mim. Preciso que saibam, preciso que digam o que lembram. Meus biógrafos, minhas fontes, sem eles sequer sou um nome. Há de haver sobrado alguma coisa; sou eu, pobre de mim! Sou eu, só que menos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário