Curioso como o cabelo de Vanessa
pouco mudou desde o colégio. Parecia-me autêntico, embora não sempre bonito. Suas
formas e texturas acompanhavam estímulo nunca revelado; achava-o
particularmente especial em quintas-feiras de maio. Afora o tigrado dos fios
brancos, está igual. Tenho vontade de tocá-los, mas não vou.
Matheus parece-me feliz, ainda
que com a resignação de quem sobrevive deformado a acidente que deveria ter
sido mortal. Não sei o que aconteceu, mas deve ter acontecido comigo também.
Vejo-o bebendo cerveja e sinto o gosto daquele ano. Tínhamos opiniões e
superpoderes; salvamos o mundo algumas vezes, o mundo nunca agradeceu.
Eu odiava Vicente, odiava que
tudo o que dizia era irrelevância mentolada. Odiei como enfeitiçou-me certo dia
e, por duas horas, concordei com a agradável estupidez que me dedicou. Ele
veste blazer riscado que lhe define o torso provavelmente bonito quando nu.
Vicente foi tão sábio, eu o odeio; a vida paga bom dinheiro por irrelevâncias
mentoladas.
O mamilo de Manoela era rosado,
quase que indistinto do resto da pele. Quando se animava, ele apontava para
mim; eu me sentia flagrado, irremediavelmente feliz. Ela foi minha primeira
menina; eu, o segundo menino dela. Nossa inauguração foi doce e apologética;
Manoela contava imaculada as mais úteis mentiras. Nesta noite, ela sorri; talvez
nunca tenha deixado de utilmente mentir. O tempo faz do hábito gorda verdade. Pergunto-me
que cor tem hoje o mamilo de Manoela.
Ouço a voz partida de Maria
Elisa. Sinto-me mal sobre como fazia o possível para evitá-la. Ela hesitava
antes de dizer bom dia, por medo de falhar; insegurança cheira a podre,
mantinha-me longe e desviava. Não me arrependo, contudo; verdade é que hoje
faria o mesmo. Maria Elisa ofendia-me por compartilharmos a mesma espécie. Eu
tinha medo do tanto que podemos nos tornar. Ainda tenho medo de ser qualquer
coisa parecida com o que lembro de Maria Elisa.
Luiz afastou-se quando nasceu o
filho caçula; senti-me decepcionado por razões esfumaçadas. Lembro-me de
admirar a confiança com que pisava a vida e anunciava que o tempo era nosso; se
um dia realmente o foi, foi-nos roubado por sua filha, criança brilhante e cheia de
arestas. O menino parece-me um tanto estúpido, mas devo ainda estar amargo.
Ali vai Débora, mas sobre Débora prefiro não falar.
Eles estão aqui, vejo-os reunidos em elegante
procissão. Tropeçam autenticamente sobre feridas de guerra e avançam, parecem
avançar; entretanto não me reconhecem. Sorrio e aceno, tento falar meu nome,
mas qual meu nome hoje? Passam por mim desavisados; sobre mim, através de mim. Preciso
que saibam, preciso que digam o que lembram. Meus biógrafos, minhas fontes, sem
eles sequer sou um nome. Há de haver sobrado alguma coisa; sou eu, pobre de
mim! Sou eu, só que menos.
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