sábado, 8 de julho de 2017

Ontem havia restos de pombo na Avenida Paulista

Se envelhecer é, em grande medida, desfazer-se de certezas, também é apegar-se caninamente àquelas que restam. Coleciono algumas, poucas e valentes; não apenas as que compartilho com a maior parte dos viventes - "serei extinto ao cabo de alguns anos, espero que de anos", "se pular do décimo andar, o chão me convidará ao estatelamento sem chance de recusa" - mas também, minhas preferidas, certezas íntimas, rebeldes e insustentáveis.

Exemplo: a intensidade do compartilhamento de memes é diretamente proporcional ao sucesso de Jair Bolsonaro nas próximas eleições. Isso é fato, e você é parte do problema. Outra? Quem diz gostar da carreira solo de Marcelo Camelo faz somente para me provocar, e consegue. Adiante seguem, coloridas e refutáveis. Dentre elas, havia uma que eu guardava com carinho desde o terço final de minha infância - pombos não são atropelados; com um bater de asas despojado, o mínimo necessário, eles escapam no último instante e seguem a vida pomba para morrer de qualquer outra forma, mas não de carro.

Pois ontem havia restos de pombo na Avenida Paulista. Espalhado rente ao chão, quase indistinto do asfalto, mas inegavelmente pombo. Retive-me por um momento e segui caminho, que em São Paulo é de mau tom prestar atenção à vida alheia, ainda que de ave, ainda que já morta; contudo levei comigo curiosa melancolia, espécie não identificada de luto que povoou o resto do meu dia. Mas pelo quê? Certamente não pelo pombo, essa piada mau contada da natureza, ainda mais se tratando de indivíduo incompetente ou confiante demais no tempo de suas asas ante o automóvel que se aproximava. Não, não serei eu a chorar por este pombo; contudo sinceramente espero que haja quem chore por ele, que cultive alguma saudade da ave que um dia foi.

Não eu; lamento por mim, que novidade, e pelo que me foi tomado, pela certeza que já não carrego e me carrega vida adentro. Conferia morna tranquilidade acreditar na doutrina da infalibilidade pombal; fazia-me crer que também eu, na iminência de tragédias e fatalidades, no limiar da tristeza acachapante, com um simples bater de asas, talvez dois, não mais do que isso, poderia contar com um triz e seguir planando para as próximas ruas. Isso mudou. A partir de ontem, cultivo novos medos; se me descuido, há um sem-número de ruas, reais ou metafóricas, em cujo asfalto posso ser deitado. A vida segue amuada e perigosa em suas avenidas.

Não deixo de pisá-las, contudo. Cautelosa e lentamente as piso. Sabe-se lá, possível que o risco me revele novas delícias, que a vida fique toda ela mais preciosa, apenas porque precária. Quem sabe não sou pássaro afortunado, quem sabe não há um próximo voo? Da minha janela, no azul já gasto de um céu de inverno, vejo numerosa revoada de pombos paulistanos, todos eles horrorosos, estúpidos, vivos.

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