Moro em São Paulo e a sala de casa é preenchida inteira por qualquer tipo de luz que o céu decida projetar. Esses são fatos, e pouco mais tenho a oferecer do que eles. Afastei-me por motivos de saúde e sem prazo de retorno da seção de conclusões, perspectivas e julgamentos sobre mim. Contudo as descrições abundam; objetivas, singelas e, qualidade maior, curtas - essas tenho colecionado com esmero diletante. Recebo cada uma que me ocorre e as seleciono sem critério. Algumas conservo por serem úteis; outras, pelo exato motivo contrário. Descrevamos, então.
É apartamento antigo, de simpáticas sabedorias. Lembra-me pela manhã das oportunidades que cada novo dia traz, convida o sol a entrar em ângulos gentis e desafia-me a desfrutá-las. Invariavelmente o decepciono, mas ele não parece ter pressa em desistir de mim; agradeço. Ando impondo-lhe meus jeitos, meu rosto; ele aceita resignado as novas formas que assume, sabe-me temporário. Sei-me também. Das paredes, observam-me os ídolos que escolhi por companhia. Nina e Dylan não me pressionam, mas tampouco parecem cultivar grandes expectativas; já Bowie não disfarça sentir monolítico tédio, mas que vá pastar. Lá do quarto Tom Waits resmunga qualquer coisa, e eu concordo, sempre concordo. Eles não estão aqui; quando falam, ouço apenas minha voz, mas até a solidão tem seu glamour em preto e branco. Das fotografias, tomo emprestadas as memórias; dos livros, leio as dedicatórias. Há muito neste apartamento. Neste apartamento falta um tanto.
Todo dia São Paulo se espreguiça até minha janela e me oferece o sem-número de epopeias privadas das quais sou silenciosa plateia. Faço resenhas, teço comentários, cultivo mesquinhas preferências. A senhorinha asiática fez muito bem em não ouvir os resmungos do marido sobre o terceiro copo de saquê que pediria; parece-me sensata e sob controle, e há tardes de sexta-feira em que uma dose de qualquer coisa faz da semana inteira experiência mais bonita. Preocupo-me com Simone, contudo. Da forma que fala, o emprego balança e as perspectivas são poucas. Eu lamento, mas bem verdade que ela deveria cuidar das palavras que usa com Joana, que, embora boa pessoa, tem língua propensa a não-fui-eu-que-te-disses. Daqui do fundo, nenhuma delas ouviria meus aplausos, surpresas ou apupos. Sento e assisto, o mais anônimo dos espectadores.
Há também encontros. Se pudesse falar à senhora que tarde dessas me desceu sacola de compras na cabeça, diria que não a culpo; São Paulo faz o suficiente para que todos tenhamos momento de loucura, e fazemos também por onde merecer às vezes tabefe desavisado. Eu sei que faço. Sigamos, nada foi em vão. Tomo cada esbarrão como evidência de que estou aqui e de que estou presente; ela pode confundi-lo e maltratá-lo com infinitos eventos de duvidosa natureza, mas São Paulo nunca lhe será indiferente.
Descrevo o apartamento onde vivo, descrevo as pessoas que estão fora dele. Nada concluo, abuso do privilégio de ser passivo e esperar por significado; contudo não há peça sobressalente nestas descrições. Preciso de cada pessoa, preciso de uma cidade inteira; menos do que isso e restaria incompleto. Bem de cima, somos formigas; nos tocamos para saber o caminho, mesmo que ele siga em direções contrárias. Capaz que, sozinhos, nem caminho houvesse. Moro em São Paulo e sigo contando com a gentileza de estranhos.
Todo dia São Paulo se espreguiça até minha janela e me oferece o sem-número de epopeias privadas das quais sou silenciosa plateia. Faço resenhas, teço comentários, cultivo mesquinhas preferências. A senhorinha asiática fez muito bem em não ouvir os resmungos do marido sobre o terceiro copo de saquê que pediria; parece-me sensata e sob controle, e há tardes de sexta-feira em que uma dose de qualquer coisa faz da semana inteira experiência mais bonita. Preocupo-me com Simone, contudo. Da forma que fala, o emprego balança e as perspectivas são poucas. Eu lamento, mas bem verdade que ela deveria cuidar das palavras que usa com Joana, que, embora boa pessoa, tem língua propensa a não-fui-eu-que-te-disses. Daqui do fundo, nenhuma delas ouviria meus aplausos, surpresas ou apupos. Sento e assisto, o mais anônimo dos espectadores.
Há também encontros. Se pudesse falar à senhora que tarde dessas me desceu sacola de compras na cabeça, diria que não a culpo; São Paulo faz o suficiente para que todos tenhamos momento de loucura, e fazemos também por onde merecer às vezes tabefe desavisado. Eu sei que faço. Sigamos, nada foi em vão. Tomo cada esbarrão como evidência de que estou aqui e de que estou presente; ela pode confundi-lo e maltratá-lo com infinitos eventos de duvidosa natureza, mas São Paulo nunca lhe será indiferente.
Descrevo o apartamento onde vivo, descrevo as pessoas que estão fora dele. Nada concluo, abuso do privilégio de ser passivo e esperar por significado; contudo não há peça sobressalente nestas descrições. Preciso de cada pessoa, preciso de uma cidade inteira; menos do que isso e restaria incompleto. Bem de cima, somos formigas; nos tocamos para saber o caminho, mesmo que ele siga em direções contrárias. Capaz que, sozinhos, nem caminho houvesse. Moro em São Paulo e sigo contando com a gentileza de estranhos.
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