sábado, 20 de maio de 2017

O amor sorri de lamentáveis mutações [conto]


Roberto pensava em maneiras provavelmente falíveis de se matar uma saudade quando Heitor entrou atrasado pela porta do bar, carregando o corpo sobre os ombros. Pensou que o fardo pouco mudara; as extremidades pareciam mais escuras, as expressões mais embotadas e indefinidas, ou talvez fosse a vida que ficara toda ela mais triste. Porque as almas neste bar são poucas e indiferentes, Heitor pôde arrastar-se sem problemas para cumprimentar Roberto como a um irmão.

Sentaram-se. Uma terceira cadeira foi puxada onde o cadáver se acomodou. Assim inclinado, espectador silencioso, quase dava para sentir compaixão pelo maldito.

Heitor era advogado e acreditava que isso lhe garantia autoridade para falar sobre a maldade da gente. Por vezes, difícil negar que tivesse razão; esta era uma dessas vezes.

- Beto, te juro que tem piorado; o limite da espécie é pra cima, pra baixo não há nenhum. A filha dessa minha cliente tinha um tipo nojentinho de câncer – leucemia mielóide aguda, espalhado pelo corpo inteiro, do dente molar à unha encravada. Os médicos disseram – garantiram – que ela não teria mais do que três meses de vida, em um prognóstico favorável. A menina é uma fortaleza; ela teria todo o direito deste mundo de se revoltar, de se sentir injustiçada – ela foi!, quem diria que não? – de destratar quem quer lhe desse na telha. Mas não. Segurou a onda dos pais, recebia os médicos com uma simpatia de chorar. Tornou-se a querida do hospital. E não somente do hospital, pois ela começou a fazer vídeos e postá-los na internet. Vídeos belíssimos, espirituosos, em que ela compartilhava a rotina de morrer em cada uma de suas trivialidades.

- Foi um sucesso.

- Imenso! Em poucos dias, centenas de milhares de acessos, comentários, grupos de apoio, até uma entrevista para a televisão. Quase instantaneamente, apareceu no colo dos pais um contrato bem gordo de uma das grandes editoras do país. Eles queriam um livro da garota contando basicamente o que já falava nos vídeos, para ser lançado depois de sua morte. Uma inspiração para essa juventude que acha que tem a vida pela frente, eles disseram. Carpe diem para iniciantes, eles disseram. O legado que ela deixará, eles disseram. Os pais hesitaram, mas a pobrezinha ficou tão empolgada que consentiram. E assim trabalharam; ela recebia a visita do ghost writer em horários limitados, mas suficientes para que ele terminasse a obra em poucas semanas. Até já tinha nome, “Guarde uma pétala para mim” – pois a menina se chamava Rosa. E tudo estava pronto; livro editado, marketing na agulha para o lançamento, só faltava a menina morrer.

- Pressinto um milagre.

- Mas ela não morria. Inclusive, estava até mais corada, mais disposta. O que estava acontecendo, como podia ser? Os exames constataram o impossível; milagrosa remissão. Rosa viveria! Ao menos tanto quanto vivemos todos em expectativa de morrer. Que alegria, que jubilo. Mas aparentemente não para todos os envolvidos. A editora alegou violação dos termos contratuais; o documento previa expressamente o falecimento da garota como condição para o cumprimento do objeto do contrato. Anexaram o laudo médico garantindo o final infeliz e breve. Não pagariam por um livro que não fosse escrito por uma garota de onze anos morta. Contestamos a medida, fizemos o possível, mas nada resolveu – pacta sunt servanda. Bom, ao menos os pais teriam a filha de volta para a vida que haviam até deixado de sonhar ter, não é? Mais ou menos. Encorajada pelo dinheiro que receberia, a família deixou a saúde pública de lado e apostou nos melhores hospitais e especialistas. Endividou-se obscenamente. A internet se mostrou curiosamente tímida nas doações. A mãe deixara o trabalho para cuidar de Rosa; o pai, psicólogo, passou a dobrar, a triplicar os turnos, e a conta não fechava. Venderam a casa, Rosa foi matriculada em escola municipal, e ainda assim meramente sobreviviam ao final do mês. O pai, além dos três turnos de consultas e relatórios, começou a cumprir um quarto no bar ao lado da clínica; quem o culparia? Em uma quinta-feira bêbada, voltando para casa, dormiu e bateu o carro. O legista escreveu que o eixo da direção lhe entrou pela boca e nunca saiu pelo outro lado.

- Meu deus... há vidas que existem só para compensar a felicidade de outras trinta.

- E lá restaram no apartamento de um quarto e meio Rosa e sua mãe, minha cliente. Imagine, ou tente imaginar, o estado em que ficaram. A menina, coitada, digo novamente – uma fortaleza. Confortava a mãe depressiva, não deixou de ir às aulas, gravou um vídeo doloroso de bonito em homenagem ao pai. Mas o esforço – era esforço, não há dúvida – lhe custou. Andava sem fôlego, nauseada, manchas pelo braço; o câncer voltara violento. E aqui entro eu. A mãe me procurou para processar a editora por danos morais e materiais, para garantir, ao menos, tratamento equivalente ao que tivera na primeira vez. Expliquei-lhe o problema de comprovar uma causalidade dessas, tão improvável e complexa, a despeito do que eu acreditava. Ela insistiu na empreitada, que correu como esperado; o advogado da editora me massacrou em audiência, a sentença de primeiro grau foi contrária, e apostaria minha mão esquerda que o tribunal vai confirmá-la. Fim de papo; Rosa seria internada em   hospital público, e sabe-se lá como a família compraria o próximo pão francês. Mas há um epílogo para essa narrativa; a editora entrou em contato. Ofereceram metade do valor do primeiro acordo, dessa vez pela história completa; câncer, remissão, esperança, câncer. Minha cliente chorou, quebrou um vaso bonito que temos no escritório, gritou comigo, mas aceitou; tinha de aceitar, precisava do dinheiro. E não se preocupe, ela vai recebê-lo; Rosa morreu hoje à tarde.

- Uma segunda vida que tivesse, eu gastaria inteira só pra esquecer a ruindade que ouvi da primeira.

- Provável que precisasse da terceira.

Roberto sentia-se habitante de dimensão diversa daquela em que habitavam os demais clientes do bar. Senhores de meia idade com quilos de sabedoria inútil para uma vida desempregada; elaboradas conspirações de duvidosa autoria, e os muxoxos de concordância que as sucediam; jovens adultos ganindo verdades incontestadas; a simpática senhora que atirava flertes cinquentenários do balcão. Ele assistia a tudo como à terceira reprise de programa do qual nunca gostou; contudo notava que havia apenas um cadáver no local, e dividiam a mesma mesa.

-Você sabe que ele fede, não é?

- Eu sei... é sempre quando acho que me acostumei que sobe o bafo morno do cheiro que só gente morta tem. E piora, te juro que tem piorado. Todo dia fica mais cremoso o ranço, mais grudento. Faz já bem um mês que respiro e me vem qualquer coisa de morte. Claramente não sei o que fazer.

- Jogá-lo fora, deixar de lado, aparentemente está fora de questão.

- Em absoluto; está dentro, dentro das questões todas. Mais de uma vez me enganei ao pensar que o fizera; me senti leve, quase livre, a liberdade tem esse gosto, e eu senti na boca. Semana passada foi assim - bebeu o uísque, brincou com a memória, pousou o copo - Acordei e me senti o campeão do mundo, sabia o que tinha de fazer e como o faria. Não coloquei nem um grão a mais do que as duas colheres cheias de café no filtro, eu e a rotina nos bastávamos, estava convicto. O corpo deixei no banheiro, não olhei pra ele uma única vez nas duas primeiras horas e catorze minutos do dia. Ele me encarou quando eu tomava banho, torto e redobrado de um canto meio sujo do chão. Bati uma enquanto o corpo me olhava. Gozei no vidro do boxe no ponto exato onde estava o rosto do infeliz. Aquilo escorrendo parecia lenta marcha de vitória em direção ao ralo. Eu era o campeão do mundo naquela manhã.

- Assim parece.

- Assim era. 

A soma das tragédias conversadas espalhava pelo bar ruído de motor em ponto-morto. Roberto sentiu-se parte de mórbida competição; o cadáver a sua frente garantia à mesa acachapante vitória ou derrota absoluta, mas qual?

- Joguei o corpo sobre os ombros e saí para o trabalho. Seria a última vez que meu terno cheiraria a podre, que os sócios sentariam a uma ou duas cadeiras de distância, que os clientes disfarçariam o desconforto, porque sou no final das contas bom pra caralho mesmo com um corpo humano na sala e posso resolver o problema deles. Deixei-o no primeiro lixo onde coube; pelo som do baque, rebentou-se pelo menos uma vértebra, mas não importava. Ele ficou ali, observando indiferente de ângulos improváveis, enquanto eu partia cheio de glória em direção ao resto da minha vida.

- Você era o campeão do mundo nessa manhã, isso ninguém lhe tira - a terceiro dose de uísque ameaçava terminar, e Roberto pensou sobre o que encontraria no fundo do copo, se não haveria também pedaço de gente morta, se não faria melhor em mantê-lo cheio - Imagino que o resto do dia tenha apenas melhorado.

- Você imagina muitíssimo bem. Era terça-feira ofensivamente quente, quando a gente parece que explora com escafandro um oceano de manteiga-de-garrafa, e ainda assim eu saltitava - literalmente saltitei umas três vezes, calcanhares batendo e tudo mais. Não tive dúvida de que cada vivente no metrô comentava pelo celular que aquele sujeito engravatado tinha o sorriso mais fadado à felicidade que eles já viram em transportes públicos. Suzana no trabalho falou "Bom, dia", eu respondi "Bom dia!", como se fosse um segredo mal guardado entre nós.

- Suzana que saiu com a gente aquela vez?

- Aquela vez, sim. Ela.

- Faz tempo aquela vez. Mais do que eu achava.

- Faz tempo aquela vez.

O uísque de repente tinha gosto de passado, e para Roberto o passado, ele todo, tinha gosto daquela vez.

- O expediente passou no melhor dos termos. Produzi como nunca. Digitei o que deveria ser digitado, imprimi o que deveria ser imprimido. As palavras saíram uma atrás da outra, produzindo os sentidos mais eficientes. Sorri em ângulos precisos e pela duração correta. Assinei meu nome sob tudo que devia ser assinado. Oito e meia da noite, saímos para umas cervejas e lá estava Bia, a advogada recém contratada no andar de cima, que até então eu não tinha visto. Uma beleza que te faz perder memória de curto-prazo. Qualquer outro dia, com um corpo podre sobre mim, sentaríamos em extremos opostos da mesa, mas não; cotovelo com cotovelo. Uma banda ruim em comum na adolescência e pronto, éramos a conversa um do outro pela noite. Há tempos não falava com alguém para quem minha opinião não fosse apenas o intervalo antes da sua vez de discursar. Ela escutou; se concordava comigo, era como se eu fosse um tantinho mais gente, mais certo diante do mundo; e nunca me senti tão cirurgicamente desconcertado do que como nas vezes em que ela discordou de minhas bobagens. Em certo ponto ela me lançou um 'Você tem cara de já ter partido e voltado algumas vezes', e só pude sorrir. Eu estava presente de maneira irrefutável, e que privilégio isso é.

- Não subestime a falta de equilíbrio sobre um instante.

- Exato. Pois no minuto seguinte, quando a distância entre nós já era desnecessariamente pouca, subiu um cheiro ruim e familiar. Perdi o tempo da piada que soltaria, resmunguei algum comentário mal colocado e ligeiramente xenófobo. Ela deixou passar, mas o momento estava perdido. A cena toda saiu um pouco de foco, como se neblina de chorume nos envolvesse. Eu só conseguia pensar que ela sentia a catinga e que sabia vir de mim; não escutava mais uma palavra, toda minha concentração estava em manter uma expressão que fosse culpadamente neutra. Uma corrida de pingos escorrendo da minha testa ao queixo, com cada vez mais participantes. Antes de ela perguntar o que havia de errado, finalmente pedi licença e fui ao banheiro.

- Enfim a virada nessa história.

- Eu estava ensopado de nervoso. Puxei o papel de duas em duas folhas, coloquei embaixo do braço, sobre as costas, no começo da bunda, até que não sobrou nada para o rosto. Lembrei de um lenço que levo sempre comigo, tirei a carteira do bolso e voilà - escurecido na ponta, quase preto, com a unha se sustentando por um fiapo de pele e pouco mais, lá estava o polegar direito do corpo, quando eu já o tinha por esquecido e descartado.

- Nunca um polegar foi tão opositor.

- Fedia tanto. A primeira camada de pele soltava, grudava nos dedos, na roupa, ficou tudo uma carniça só. Joguei o troço na privada, dei descarga, fui ao espelho. Só vi um sujeito que não deveria estar a cinco quilômetros de região habitada. Inventei uma desculpa, pedi o táxi. Bia me olhava como se quisesse a noite dela de volta. Dia seguinte, acordo e lá estava. Com uma expressão que não pedia desculpas, mas tampouco era orgulhosa, o corpo me encarava. Ficamos os dois na cama a manhã inteira.

Observaram em silêncio o terceiro elemento da mesa por alguns momentos. O corpo não se manifestava em palavras, entretanto sua presença era incontornável, ecoando o ruído abafado de dias ternos e difíceis, quando a vida era possibilidade e havia decisões a serem tomadas. Roberto não conseguia odiá-lo, embora achasse que devesse; o monopólio das conversas, o cheiro de miséria, o peso sobre os ombros de amigo tão querido. Contudo sentia apenas tristeza por constatar o que Heitor não conseguia, que o corpo era patético e ordinário, sempre fora, desde que morrera. Gostaria de fazê-lo ver, gostaria que soubesse também, mas era inútil; Roberto sabia, e especialmente agora sabia, que morte dessas se batalha e se processa, é valsa torta, entre avanços e recuos, e resiste enquanto houver ameaça de uma próxima nota; reinterpreta-se e complementa-se enquanto houver linha em branco; inventa verdades em que pode acreditar. Roberto sabia, e especialmente agora sabia, que o amor tem instinto de sobrevivência e finge de morto para seguir respirando.

- Beto - a cabeça de Heitor agora cedia à gravidade reforçada pelo uísque - eu o matei, Beto. Fui eu.

- Eu seriamente duvido disso.

- Juro que foi, juro por deus que fui eu.

- Heitor querido, amor se mata a quatro mãos.

- Mas eu quis. Eu lembro de querer. Uma convicção quase visceral de que devia fazê-lo; a inevitabilidade do choque entre o chão e o paquiderme. Era algo tão concreto que não importava a forma como ocorreria; apenas não havia versão da realidade em que ele seguisse vivo. E assim foi, meu grande plano-mestre. Comédia de erros pobremente inspirada, uma sucessão de minha-culpa-sua-culpas em direção ao fim. O fim. Eu fiz tudo o que podia para chegar ao fim.

- Você se arrepende?

Heitor fitou o copo quase vazio por dois instantes e sorriu envergonhado.

- Eu não sei. Sabia disso? Eu não sei. Não tenho certeza se mais ressinto o fato ou sua autoria. Os dias são diferentes. Há aqueles como lhe contei, em que sou o campeão de tudo. Mas por vezes acordo em outras datas, de variadas cores e aspirações. Anteontem, antes de dormir, assistia àquele meu filme preferido; sei cada diálogo, choro só de lembrar da cena que vai me fazer chorar. Antes do fim, quando a história ameaça tomar caminhos de tristeza, percebi que segurava a mão do corpo. Eu e o cadáver, de mãos dadas no sofá de casa. E lembrei tanta coisa que existiu e que não existiu. Lembrei um dia naquele mesmo sofá,  uma piada e como ri dela; pensei em cada plano besta que ficaria sem consequência; me veio lembrança bonita de maus entendidos. Bateu um desgosto, um buraco fundo danado. Nem pensei, e já estava deitado no colo do morto, chorando baixinho. Era podre e sem vida, de toque rígido e gelado, mas era um colo.

- Eu sinto muito.

- Não sinta. Eventualmente levantei e fiz guacamole; pensei em nosso presidente e no meu time; a vida voltou aos desgostos produtivos. Cada vez mais, concluo que aconteceu o que deveria acontecer, mas que poderia ter sido tudo um tanto mais doce, mais cheio de cuidado. Há dias e há dias. Não tenho respostas irrevogáveis ou planos de ação. Estou como você me vê, um homem com sua carga. Carrego o corpo sobre os ombros por culpa, quem sabe? Por redenção? Não sei. É meu fardo. Eu realmente tenho gostado de guacamole por esses tempos.

A conversa enfim voltou-se a outros temas; os anos circulam em requentadas rotinas, e basta viver um pouco para que se possa longamente dizer quase nada de qualquer assunto e concordar adequadamente sobre a maior parte deles. Durante o resto da noite, manteve-se entre eles a sucumbida figura; não mais mencionada, entretanto presente. Heitor decidiu ir embora; abraçou Roberto como a um irmão e jogou o corpo sobre os ombros. Quando desviava das mesas em direção à saída, a improvável matéria que sustenta coisas findas cedeu, e a mão direita da carga tombou em baque macio, nunca percebido. Se testemunhasse a cena e lhe encarasse o rosto, alma mais otimista do que as nossas afirmaria que o corpo sorria de lamentáveis mutações.

Entretanto Roberto nada viu, pois já não estava lá. Viajava, a espaçados saltos, por rostos que conhecera um dia e cujas peles já lhe roçaram o nariz; desses rostos saíram sons e palavras que lhe roubaram inusitadas exclamações; essas palavras agora formavam melodia cacofônica, soando como se almejasse à eternidade. Mas cessaria, naturalmente cessaria. A última palavra. Roberto lembrava cada última palavra e a história que ela concluiu. Que belo fecho; que belo poema, se não fosse silêncio. Ergueu o rosto uns poucos centímetros e confirmou que o bar estava ocupado por fantasmas; se pudesse chorar, choraria, mas o tempo de chorar passara quando decidiu enterrar seus mortos.

Um comentário:

  1. Enquanto lia, posso jurar que Kafka e Nelson conversavam aqui do lado. Pareciam gostar...

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