Roberto pensava em maneiras
provavelmente falíveis de se matar uma saudade quando Heitor entrou atrasado
pela porta do bar, carregando o corpo sobre os ombros. Pensou que o fardo pouco
mudara; as extremidades pareciam mais escuras, as expressões mais embotadas e
indefinidas, ou talvez fosse a vida que ficara toda ela mais triste. Porque as
almas neste bar são poucas e indiferentes, Heitor pôde arrastar-se sem
problemas para cumprimentar Roberto como a um irmão.
Sentaram-se. Uma terceira cadeira
foi puxada onde o cadáver se acomodou. Assim inclinado, espectador silencioso,
quase dava para sentir compaixão pelo maldito.
Heitor era advogado e acreditava
que isso lhe garantia autoridade para falar sobre a maldade da gente. Por
vezes, difícil negar que tivesse razão; esta era uma dessas vezes.
- Beto, te juro que tem piorado;
o limite da espécie é pra cima, pra baixo não há nenhum. A filha dessa
minha cliente tinha um tipo nojentinho de câncer – leucemia mielóide aguda,
espalhado pelo corpo inteiro, do dente molar à unha encravada. Os médicos
disseram – garantiram – que ela não
teria mais do que três meses de vida, em um prognóstico favorável. A menina é
uma fortaleza; ela teria todo o direito deste mundo de se revoltar, de se
sentir injustiçada – ela foi!, quem diria que não? – de destratar quem quer lhe
desse na telha. Mas não. Segurou a onda dos pais, recebia os médicos com uma
simpatia de chorar. Tornou-se a querida do hospital. E não somente do hospital,
pois ela começou a fazer vídeos e postá-los na internet. Vídeos belíssimos,
espirituosos, em que ela compartilhava a rotina de morrer em cada uma de suas
trivialidades.
- Foi um sucesso.
- Imenso! Em poucos dias,
centenas de milhares de acessos, comentários, grupos de apoio, até uma
entrevista para a televisão. Quase instantaneamente, apareceu no colo dos pais
um contrato bem gordo de uma das grandes editoras do país. Eles queriam um
livro da garota contando basicamente o que já falava nos vídeos, para ser
lançado depois de sua morte. Uma inspiração para essa juventude que acha que
tem a vida pela frente, eles disseram. Carpe
diem para iniciantes, eles disseram. O legado que ela deixará, eles
disseram. Os pais hesitaram, mas a pobrezinha ficou tão empolgada que
consentiram. E assim trabalharam; ela recebia a visita do ghost writer em horários limitados, mas suficientes para que ele
terminasse a obra em poucas semanas. Até já tinha nome, “Guarde uma pétala para mim” – pois a menina se chamava Rosa. E tudo
estava pronto; livro editado, marketing
na agulha para o lançamento, só faltava a menina morrer.
- Pressinto um milagre.
- Mas ela não morria. Inclusive,
estava até mais corada, mais disposta. O que estava acontecendo, como podia
ser? Os exames constataram o impossível; milagrosa remissão. Rosa viveria! Ao
menos tanto quanto vivemos todos em expectativa de morrer. Que alegria, que
jubilo. Mas aparentemente não para todos os envolvidos. A editora alegou
violação dos termos contratuais; o documento previa expressamente o falecimento
da garota como condição para o cumprimento do objeto do contrato. Anexaram o
laudo médico garantindo o final infeliz
e breve. Não pagariam por um livro que não fosse escrito por uma garota de onze
anos morta. Contestamos a medida, fizemos o possível, mas nada resolveu – pacta sunt servanda. Bom, ao menos os
pais teriam a filha de volta para a vida que haviam até deixado de sonhar ter,
não é? Mais ou menos. Encorajada pelo dinheiro que receberia, a família deixou
a saúde pública de lado e apostou nos melhores hospitais e especialistas.
Endividou-se obscenamente. A internet se mostrou curiosamente tímida nas
doações. A mãe deixara o trabalho para cuidar de Rosa; o pai, psicólogo, passou
a dobrar, a triplicar os turnos, e a conta não fechava. Venderam a casa, Rosa
foi matriculada em escola municipal, e ainda assim meramente sobreviviam ao
final do mês. O pai, além dos três turnos de consultas e relatórios, começou a
cumprir um quarto no bar ao lado da clínica; quem o culparia? Em uma
quinta-feira bêbada, voltando para casa, dormiu e bateu o carro. O legista
escreveu que o eixo da direção lhe entrou pela boca e nunca saiu pelo outro
lado.
- Meu deus... há vidas que
existem só para compensar a felicidade de outras trinta.
- E lá restaram no apartamento de
um quarto e meio Rosa e sua mãe, minha cliente. Imagine, ou tente imaginar, o
estado em que ficaram. A menina, coitada, digo novamente – uma fortaleza.
Confortava a mãe depressiva, não deixou de ir às aulas, gravou um vídeo
doloroso de bonito em homenagem ao pai. Mas o esforço – era esforço, não há
dúvida – lhe custou. Andava sem fôlego, nauseada, manchas pelo braço; o câncer
voltara violento. E aqui entro eu. A mãe me procurou para processar a editora
por danos morais e materiais, para garantir, ao menos, tratamento equivalente
ao que tivera na primeira vez. Expliquei-lhe o problema de comprovar uma
causalidade dessas, tão improvável e complexa, a despeito do que eu acreditava.
Ela insistiu na empreitada, que correu como esperado; o advogado da editora me
massacrou em audiência, a sentença de primeiro grau foi contrária, e apostaria
minha mão esquerda que o tribunal vai confirmá-la. Fim de papo; Rosa seria
internada em hospital público, e sabe-se lá como a família
compraria o próximo pão francês. Mas há um epílogo para essa narrativa; a
editora entrou em contato. Ofereceram metade do valor do primeiro acordo, dessa
vez pela história completa; câncer, remissão, esperança, câncer. Minha cliente
chorou, quebrou um vaso bonito que temos no escritório, gritou comigo, mas
aceitou; tinha de aceitar, precisava do dinheiro. E não se preocupe, ela vai
recebê-lo; Rosa morreu hoje à tarde.
- Uma segunda vida que tivesse,
eu gastaria inteira só pra esquecer a ruindade que ouvi da primeira.
- Provável que precisasse da
terceira.
Roberto sentia-se habitante de
dimensão diversa daquela em que habitavam os demais clientes do bar. Senhores
de meia idade com quilos de sabedoria inútil para uma vida desempregada;
elaboradas conspirações de duvidosa autoria, e os muxoxos de concordância que
as sucediam; jovens adultos ganindo verdades incontestadas; a simpática senhora
que atirava flertes cinquentenários do balcão. Ele assistia a tudo como à
terceira reprise de programa do qual nunca gostou; contudo notava que havia
apenas um cadáver no local, e dividiam a mesma mesa.
-Você sabe que ele fede, não é?
- Eu sei... é sempre quando acho
que me acostumei que sobe o bafo morno do cheiro que só gente morta tem. E
piora, te juro que tem piorado. Todo dia fica mais cremoso o ranço, mais
grudento. Faz já bem um mês que respiro e me vem qualquer coisa de morte.
Claramente não sei o que fazer.
- Jogá-lo fora, deixar de lado,
aparentemente está fora de questão.
- Em absoluto; está dentro,
dentro das questões todas. Mais de uma vez me enganei ao pensar que o fizera;
me senti leve, quase livre, a liberdade tem esse gosto, e eu senti na boca.
Semana passada foi assim - bebeu o uísque, brincou com a memória, pousou o copo
- Acordei e me senti o campeão do mundo, sabia o que tinha de fazer e como o
faria. Não coloquei nem um grão a mais do que as duas colheres cheias de café
no filtro, eu e a rotina nos bastávamos, estava convicto. O corpo deixei no
banheiro, não olhei pra ele uma única vez nas duas primeiras horas e catorze
minutos do dia. Ele me encarou quando eu tomava banho, torto e redobrado de um
canto meio sujo do chão. Bati uma enquanto o corpo me olhava. Gozei no vidro do
boxe no ponto exato onde estava o rosto do infeliz. Aquilo escorrendo parecia
lenta marcha de vitória em direção ao ralo. Eu era o campeão do mundo naquela
manhã.
- Assim parece.
- Assim era.
A soma das tragédias conversadas
espalhava pelo bar ruído de motor em ponto-morto. Roberto sentiu-se parte de
mórbida competição; o cadáver a sua frente garantia à mesa acachapante vitória
ou derrota absoluta, mas qual?
- Joguei o corpo sobre os ombros
e saí para o trabalho. Seria a última vez que meu terno cheiraria a podre, que
os sócios sentariam a uma ou duas cadeiras de distância, que os clientes disfarçariam
o desconforto, porque sou no final das contas bom pra caralho mesmo com um
corpo humano na sala e posso resolver o problema deles. Deixei-o no primeiro
lixo onde coube; pelo som do baque, rebentou-se pelo menos uma vértebra, mas
não importava. Ele ficou ali, observando indiferente de ângulos improváveis,
enquanto eu partia cheio de glória em direção ao resto da minha vida.
- Você era o campeão do mundo
nessa manhã, isso ninguém lhe tira - a terceiro dose de uísque ameaçava
terminar, e Roberto pensou sobre o que encontraria no fundo do copo, se não
haveria também pedaço de gente morta, se não faria melhor em mantê-lo cheio -
Imagino que o resto do dia tenha apenas melhorado.
- Você imagina muitíssimo bem.
Era terça-feira ofensivamente quente, quando a gente parece que explora com
escafandro um oceano de manteiga-de-garrafa, e ainda assim eu saltitava -
literalmente saltitei umas três vezes, calcanhares batendo e tudo mais. Não
tive dúvida de que cada vivente no metrô comentava pelo celular que aquele
sujeito engravatado tinha o sorriso mais fadado à felicidade que eles já viram
em transportes públicos. Suzana no trabalho falou "Bom, dia", eu
respondi "Bom dia!", como se fosse um segredo mal guardado entre nós.
- Suzana que saiu com a gente
aquela vez?
- Aquela vez, sim. Ela.
- Faz tempo aquela vez. Mais do
que eu achava.
- Faz tempo aquela vez.
O uísque de repente tinha gosto
de passado, e para Roberto o passado, ele todo, tinha gosto daquela
vez.
- O expediente passou no melhor
dos termos. Produzi como nunca. Digitei o que deveria ser digitado, imprimi o
que deveria ser imprimido. As palavras saíram uma atrás da outra, produzindo os
sentidos mais eficientes. Sorri em ângulos precisos e pela duração correta.
Assinei meu nome sob tudo que devia ser assinado. Oito e meia da noite, saímos
para umas cervejas e lá estava Bia, a advogada recém contratada no andar
de cima, que até então eu não tinha visto. Uma beleza que te faz perder
memória de curto-prazo. Qualquer outro dia, com um corpo podre sobre mim,
sentaríamos em extremos opostos da mesa, mas não; cotovelo com cotovelo. Uma
banda ruim em comum na adolescência e pronto, éramos a conversa um do
outro pela noite. Há tempos não falava com alguém para quem minha opinião
não fosse apenas o intervalo antes da sua vez de discursar. Ela escutou;
se concordava comigo, era como se eu fosse um tantinho mais gente, mais certo
diante do mundo; e nunca me senti tão cirurgicamente desconcertado do que como
nas vezes em que ela discordou de minhas bobagens. Em certo ponto ela me lançou
um 'Você tem cara de já ter partido e voltado algumas vezes', e só pude sorrir.
Eu estava presente de maneira irrefutável, e que privilégio isso é.
- Não subestime a falta de
equilíbrio sobre um instante.
- Exato. Pois no minuto seguinte,
quando a distância entre nós já era desnecessariamente pouca, subiu um cheiro
ruim e familiar. Perdi o tempo da piada que soltaria, resmunguei algum
comentário mal colocado e ligeiramente xenófobo. Ela deixou passar, mas o
momento estava perdido. A cena toda saiu um pouco de foco, como se neblina de
chorume nos envolvesse. Eu só conseguia pensar que ela sentia a catinga e que
sabia vir de mim; não escutava mais uma palavra, toda minha concentração estava
em manter uma expressão que fosse culpadamente neutra. Uma corrida de pingos
escorrendo da minha testa ao queixo, com cada vez mais participantes. Antes de
ela perguntar o que havia de errado, finalmente pedi licença e fui ao banheiro.
- Enfim a virada nessa história.
- Eu estava ensopado de nervoso.
Puxei o papel de duas em duas folhas, coloquei embaixo do braço, sobre as
costas, no começo da bunda, até que não sobrou nada para o rosto. Lembrei de um
lenço que levo sempre comigo, tirei a carteira do bolso e voilà - escurecido na ponta, quase preto, com a unha se sustentando
por um fiapo de pele e pouco mais, lá estava o polegar direito do corpo,
quando eu já o tinha por esquecido e descartado.
- Nunca um polegar foi tão
opositor.
- Fedia tanto. A primeira camada
de pele soltava, grudava nos dedos, na roupa, ficou tudo uma carniça só. Joguei
o troço na privada, dei descarga, fui ao espelho. Só vi um sujeito que não
deveria estar a cinco quilômetros de região habitada. Inventei uma desculpa,
pedi o táxi. Bia me olhava como se quisesse a noite dela de volta. Dia
seguinte, acordo e lá estava. Com uma expressão que não pedia desculpas, mas
tampouco era orgulhosa, o corpo me encarava. Ficamos os dois na cama a manhã
inteira.
Observaram em silêncio o terceiro
elemento da mesa por alguns momentos. O corpo não se manifestava em palavras,
entretanto sua presença era incontornável, ecoando o ruído abafado de dias
ternos e difíceis, quando a vida era possibilidade e havia decisões a serem
tomadas. Roberto não conseguia odiá-lo, embora achasse que devesse; o monopólio
das conversas, o cheiro de miséria, o peso sobre os ombros de amigo tão
querido. Contudo sentia apenas tristeza por constatar o que Heitor não
conseguia, que o corpo era patético e ordinário, sempre fora, desde que
morrera. Gostaria de fazê-lo ver, gostaria que soubesse também, mas era inútil;
Roberto sabia, e especialmente agora sabia, que morte dessas se batalha e
se processa, é valsa torta, entre avanços e recuos, e resiste enquanto houver
ameaça de uma próxima nota; reinterpreta-se e complementa-se enquanto
houver linha em branco; inventa verdades em que pode acreditar. Roberto sabia,
e especialmente agora sabia, que o amor tem instinto de sobrevivência e finge
de morto para seguir respirando.
- Beto - a cabeça de Heitor agora
cedia à gravidade reforçada pelo uísque - eu o matei, Beto. Fui eu.
- Eu seriamente duvido disso.
- Juro que foi, juro por deus que
fui eu.
- Heitor querido, amor se mata a
quatro mãos.
- Mas eu quis. Eu lembro de
querer. Uma convicção quase visceral de que devia fazê-lo; a inevitabilidade do
choque entre o chão e o paquiderme. Era algo tão concreto que não importava a
forma como ocorreria; apenas não havia versão da realidade em que ele seguisse
vivo. E assim foi, meu grande plano-mestre. Comédia de erros pobremente
inspirada, uma sucessão de minha-culpa-sua-culpas em direção ao fim. O fim. Eu
fiz tudo o que podia para chegar ao fim.
- Você se arrepende?
Heitor fitou o copo quase vazio
por dois instantes e sorriu envergonhado.
- Eu não sei. Sabia disso? Eu não
sei. Não tenho certeza se mais ressinto o fato ou sua autoria. Os dias são
diferentes. Há aqueles como lhe contei, em que sou o campeão de tudo. Mas por
vezes acordo em outras datas, de variadas cores e aspirações. Anteontem, antes
de dormir, assistia àquele meu filme preferido; sei cada diálogo, choro só de
lembrar da cena que vai me fazer chorar. Antes do fim, quando a história ameaça
tomar caminhos de tristeza, percebi que segurava a mão do corpo. Eu e o cadáver,
de mãos dadas no sofá de casa. E lembrei tanta coisa que existiu e que não
existiu. Lembrei um dia naquele mesmo sofá, uma piada e como ri dela; pensei
em cada plano besta que ficaria sem consequência; me veio lembrança bonita de
maus entendidos. Bateu um desgosto, um buraco fundo danado. Nem pensei, e já
estava deitado no colo do morto, chorando baixinho. Era podre e sem vida, de
toque rígido e gelado, mas era um colo.
- Eu sinto muito.
- Não sinta. Eventualmente
levantei e fiz guacamole; pensei em nosso presidente e no meu time; a vida
voltou aos desgostos produtivos. Cada vez mais, concluo que aconteceu o que
deveria acontecer, mas que poderia ter sido tudo um tanto mais doce, mais cheio
de cuidado. Há dias e há dias. Não tenho respostas irrevogáveis ou planos de
ação. Estou como você me vê, um homem com sua carga. Carrego o corpo sobre os
ombros por culpa, quem sabe? Por redenção? Não sei. É meu fardo. Eu realmente
tenho gostado de guacamole por esses tempos.
A conversa enfim voltou-se a
outros temas; os anos circulam em requentadas rotinas, e basta viver um pouco
para que se possa longamente dizer quase nada de qualquer assunto e concordar
adequadamente sobre a maior parte deles. Durante o resto da noite, manteve-se
entre eles a sucumbida figura; não mais mencionada, entretanto presente. Heitor
decidiu ir embora; abraçou Roberto como a um irmão e jogou o corpo sobre os
ombros. Quando desviava das mesas em direção à saída, a improvável matéria que
sustenta coisas findas cedeu, e a mão direita da carga tombou em baque macio,
nunca percebido. Se testemunhasse a cena e lhe encarasse o rosto, alma mais
otimista do que as nossas afirmaria que o corpo sorria de lamentáveis mutações.
Entretanto Roberto nada viu, pois
já não estava lá. Viajava, a espaçados saltos, por rostos que conhecera um dia
e cujas peles já lhe roçaram o nariz; desses rostos saíram sons e palavras que
lhe roubaram inusitadas exclamações; essas palavras agora formavam melodia
cacofônica, soando como se almejasse à eternidade. Mas cessaria, naturalmente
cessaria. A última palavra. Roberto lembrava cada última palavra e a história
que ela concluiu. Que belo fecho; que belo poema, se não fosse silêncio. Ergueu
o rosto uns poucos centímetros e confirmou que o bar estava ocupado por
fantasmas; se pudesse chorar, choraria, mas o tempo de chorar passara quando
decidiu enterrar seus mortos.
Enquanto lia, posso jurar que Kafka e Nelson conversavam aqui do lado. Pareciam gostar...
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