domingo, 16 de outubro de 2016

Redondamente zero.

O celular informou-me que, parabéns, eu correra o quilômetro cento e cinquenta neste ano. Cento e cinquenta quilômetros corridos no Centro de Convivência da cidade de Campinas, cuja volta estimo medir coisa de setecentos metros. Duzentos e quatorze voltas, em um único ano, em uma mesma praça. Afora o equilíbrio calórico precariamente mantido, era de se esperar que atividade repetida poucas centenas de vezes resultasse em alguma excelência, mas que nada - ocorrem-me as mesmas dores, o mesmo cansaço, a mesma sensação de falta de sentido em lutar contra a degradação da matéria, a mesma vontade de comprar uma cerveja e praticamente anular a meia-hora de exercício que passou. De novo, em verdade, apenas a reflexão sobre os números e as medidas que uso para explicar os fatos e processos da vida. Ou seja, absolutamente nada de útil, mas estiquemos essa inutilidade ao limite.

Em menos de um mês, completo minha vigésima-oitava volta ao redor do Sol. Nessa corrida, não tenho qualquer ambição de atingir excelência; se eu reduzir novos erros e evitar repetir os antigos, dou-me por satisfeito antes de atravessar a linha de chegada - ou de ser atravessado por ela, que as formas de morte são variadas e criativas. Admito que vinte e oito voltas não é muito, mas acontece que a vida traz mais dores, cansaço e falta de sentido do que qualquer praça de Campinas - e a mesmíssima vontade de abrir uma cerveja no fim do dia. Sigo correndo, e, se eu lhe parecer esgotado, é só fadiga. Respiro; sigo correndo.

Em cinco cidades fiz casa nesse punhado de anos. Em São Paulo, mal entendi que nascera e já parti; de Pelotas, levei um irmão. Em Recife, deixei vinte e cinco anos, incontáveis lembranças e uma saudade que me draga de volta como a maré de Boa Viagem - também a saudade tem seus tubarões -, sempre que posso e nem sempre quando preciso. Aprendi em Tübingen que o mundo se pisa. Campinas me deu meios para viver e me ensinou que não há meio de se viver só. Uma poltrona mais assanhada aqui de casa adivinha o que me passa à cabeça e me encara, como se questionasse - mas já se vai? Ah, meu bem, se é pra ser sincero, confesso que nunca cheguei. Um carrinho de compras bastou onde coubesse tudo o que eu levava quando entrei pela primeira vez por esta porta; contudo ainda não achei onde enfiar a solidão que entrou comigo naquela noite de janeiro.

Números? Números, então. Vinte e uma malescritas vezes publiquei neste cantinho confessional, o que resulta em média de escritor preguiçoso. Gostaria de dizer que o tempo é bem aproveitado em outras áreas, mas meu diletantismo é direcionado às causas mais inúteis. Mesmo com toda a preguiça e o comodismo, cultivo certo orgulho mesquinho dos quatro mil seiscentos e quarenta e três acessos de que desfrutaram, até hoje, estas páginas, ainda que ativamente ignore a porcentagem desses acessos por que sou, eu mesmo, responsável. De toda forma, sou sincera e excessivamente grato por cada visita, e todo elogio perdido recebo como se me entregassem o prêmio Camões e um milhão de dólares. Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta obrigados para cada leitor destes tristes textos.

Porque a vida não hesita em correr adiante, porque sou novo demais para estar memorialista, tenho me interessado, mais e mais, pelo número zero, por tudo que fiz vez nenhuma, por cada vazio que aguarda ser preenchido por saudosos algorismos. O risoto - ou era penne?, talvez seja penne - de salmão defumado que nunca comi. Aquela vez em que a mera visão do templo de Garni abalou meu bem fundado ceticismo, e deixei a Armênia prometendo não voltar, apenas por covardia. Nunca tive cão chamado Toboso ou filho chamado Theo. Mas, diria amigo ou amiga querida, ateu tão safado com filho desse nome? É mais uma prova de que deus foi feito pelo homem, responderia de caso já pensado - ririam conformados, coisas de Daniel, enquanto Toboso observava de um canto da sala, indiferente às pessoas e suas vaidosas ironias. 

Nada disso aconteceu e, nesta tarde abafada de nuvens indecisas, posso apenas especular sobre os números que, somados, me presentearão com motivo para escrever; ou, ainda melhor, para não o fazer. Até lá, zero, redondamente zero.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Acaso, fraqueza, razão.

Depois de certa quantidade de anos sobre a terra, toda informação inédita é recebida em referência às outras que já levamos conosco; elas nos transformam, mas também as fazemos nossas no processo. Até uns dezessete anos, contudo, nossa cabeça é matéria amorfa e flexível - cada nova ideia a define de maneira irrevogável. Foi nessa infeliz idade que li "A Náusea", de J. P. Sartre, e fui sentenciado a uma vida de pensamentos modorrentos. Pois, em determinado momento do romance, o protagonista conclui: "todo vivente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso".

O impacto dessa ideia sobre mim não se bem ilustra com grande barulho, com bums ou pâns, mas com prolongado suspiro que nem sei se já cessou; capaz de ter-me acostumado a ele, de que faça parte do som ambiente de minha cabeça em ponto-morto. Essas doze palavras me foram tatuadas na retina. Inclusive, bom dizer, transcrevo-as apenas por estar convicto de que ninguém abaixo de dezoito anos leria estas linhas - em verdade, tampouco ninguém acima, mas deixem-me com meu público fictício - de outra forma, não seria tão irresponsável.

Retorno: tomei essa ideia por regra, regra que se dividiu em preocupante variedade de subnormas e quaseverdades, todo um melancólico ordenamento jurídico responsável, tão somente, a interpretar e dar sentido a cada fato e pensamento que me ocorria. Compartilho agora alguns deles. A princípio, não me preocupavam especialmente nascer sem razão e morrer por acaso; julgava que pouco podia fazer sobre as extremidades do percurso - uma existência em fraqueza, por outro lado, tornou-se pano de fundo dos meus dias. Não apenas dos maus momentos - a tristeza desses é evidente e redundante; mas, e principalmente, também dos bons. Passei a buscar com lupa, em cada vitória e glória diminuta, a parcela de fraqueza que as maculava. Não apenas nas minhas - se ao menos limitasse essa visão ao meu mundinho, teria poupado a mim e aos próximos algumas lamentáveis decepções - mas nas das pessoas mais queridas; escrevi em meu diário, à época, que me tornava farejador de frustrações, o que é uma péssima raça de cachorro para lugares fechados e abertos.

Tentei catar fraqueza no amor, imagine o infeliz! E tive sucesso. Não conseguia me decidir sobre o que era perna e o que era muleta. O que levava comigo e o que me era levado. Paranoia e sua prima insegurança são visitas ingratas para um casal. E o amor prolongou-se por fraqueza, mas não por acaso se desfez. Ainda hoje, se me lembro desses dias confusos, sinto doída compaixão pelo garoto que fui, pelos erros que não conseguiria corrigir. Gostaria de chegar junto e dizer-lhe que é difícil, mas não tanto; que a fraqueza do amor se desfaz a quatro mãos; que são um casal, mas são inteiros, e não as metades de um quebra-cabeças de duas peças. Paciência. Repito comigo essas palavras e guardo as estrelas. Algo virá.

Com o tempo, talvez por tornar-me um tanto - um pouco? - mais seguro em minhas circunstâncias, passei a brincar com a ideia, já que não poderia esquecê-la. E se houvesse quem nascesse por acaso, se prolongasse sem razão e morresse por fraqueza? Não me soava improvável; era até bastante verossímil. Não há acaso maior do que o novelo de probabilidades que precede a existência; uma vida sem razão não é algo tão diferente do que estatisticamente já ocorre; e um momento de fraqueza antes da extinção é preferível a algumas dezenas de anos. Ou, ainda, se seguimos a sequência, nascer por fraqueza, prolongar-se por acaso e morrer sem razão? Também não soa tão absurdo. Morrer por nascer, sem razão porque ao acaso, fraquejado por prolongar-se? Tampouco. Em verdade, pergunto-me se há grandes diferenças entre essas alternativas, ou entre todas as alternativas possíveis. Arriscaria dizer que não, mas não me chamo Sartre, sou apenas Daniel e prolongo-me por fraqueza, sem razão. Como neste texto.

Recentemente, já que acaso não houve que me matasse, decidi barganhar com a noção. Desisti de desmenti-la - creio que nunca realmente tentei - mas há brechas a serem exploradas. Penso que, se nunca deixar de nascer, posso pular ao acaso diretamente do sem sentido, dispensando uma existência de fraqueza. Parece-me razoável solução. Como fazê-lo? Não saberia exatamente. Mas tento, juro que tento. Tento que meus dias se pintem de novas cores, ou ao menos de um novo tom de bege; se as rimas não forem raras, que sejam ordinárias, que nem rimem, mas que haja qualquer poesia; que o suspiro em minha cabeça, já que não cessa, ao menos alcance notas mais altas, que antecipe um gran finale, que me surpreenda enfim com grito histérico ou súbito silêncio. Juro que tento, nem sempre consigo; mas há dias em que me vem um gosto danado de vida nova.

Andava em paz com a tragédia existencialista dos franceses, com a falta de sentido da existência, com o silêncio de deus; meus problemas hoje têm rosto, têm perguntas de múltipla escolha, têm endereço. Foi doce poder olhar para mim, alguns anos atrás, e identificar quais ideias me conduziram e me trouxeram até aqui. No final das contas, poderia ter sido pior - essa constatação, se não é gloriosa, tem suas virtudes - e eu andava mais leve em face de questões tão prodigamente inúteis. Até que no almoço deste domingo ouvi a irrefutável verdade de que "o destino de toda célula é o câncer ou a senescência", e aceito sugestões de psicanalistas competentes que caibam no orçamento de um servidor público.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Talvez andorinha.

Em Campinas há uma praça que se chama Imprensa Fluminense; julgo, contudo, mais bonito e preciso o apelido Centro de Convivência. Nas primeiras horas da manhã de uma quarta-feira, lá convivem andorinhas e mendigos. Em um domingo ensolarado como este, ela é tomada por famílias e feirantes. E por mim; que eu não me esqueça de mim, embora não seja família, nem mendigo, nem feirante. Talvez andorinha.

Que beleza têm domingos ensolarados com gente na rua. Casais, crianças, cachorros, sorvete, saxofone, senhores e senhoras entretidos com as novidades de dêcenios passados. É quase impossível errar o quadro com essas tintas. Mas a que preço? Onde estão os tristes? Talvez em casa, temendo macular de azul as cores quentes da praça. Talvez imaginem que soaria alarme ao primeiro passo que arriscassem entre os demais, e em poucos minutos restaria esvaziado o centro e a convivência, reservados ao convívio dos tristes com suas misérias. Não sei. É daquelas verdades injustas o quão obscena é a tristeza sob o sol.

Reflito que, na perspectiva desta praça, os vivos são minoria. É o que acontece quando se vive demais. Já é extinta a maior parte de quem a frequentou; as primeiras crianças aqui trazidas pelos pais já adequadamente percorreram o trajeto inteiro da existência, até não haver mais trajeto algum. Para esta praça, não sou mais do que o breve descanso antes da saudade de mim; e a saudade, ela mesma, pouco dura antes que suceda silenciosa indiferença. Não concordo inteiramente com o niilismo das praças, mas juro que faz pensar.

E penso. Penso que serei família, serei casal, serei criança, serei triste. Com alguma sorte, serei senhor de idade. Talvez até andorinha eu seja. Se Campinas não for testemunha de minha alegria, há outras praças no mundo, e o mundo mesmo é também praça; que eu não espere domingos de sol para juntar-me à multidão. Há qualquer coisa neste jardim que me sugere o absurdo da vida. Fecho os olhos e peço por um pouco de beleza.

Um são bernardo caminha despreocupado pela praça; o peso do cão deixa incontestáveis marcas na grama. Desconfio que levará um tempo antes que a grama esqueça as pegadas desse são bernardo.

sábado, 23 de julho de 2016

A frequência dos cometas.

É sábado à tarde, e tento estudar. Logo de início, contudo, fica evidente a ausência de concerto de agendas entre mim e a vizinha de baixo; é sábado à tarde, e ela tenta dar um churrasco. Apenas um de nós terá sucesso na empreitada, e não culpo quem, apesar de muito bem me querer, decidir não apostar em minhas chances. Longe de mim impedir a fortuna de amigos com sentimentalismo.

Mesmo para um churrasco de sábado à tarde, pondero comigo que o volume da conversa está excessivamente alto. Não digo que todas, mas entendo frases o suficiente para que possa completar as lacunas com suposições razoáveis e compreender, assim, o sentido geral da conversa; mais do que isso, permito-me opinar como se lá estivesse e, mesmo, julgar os demais participantes dessa comunicação remota.

Por algum tempo, concluía serem apenas garotas que compunham o resto do grupo do qual agora compulsoriamente faço parte; demorou um pouco antes que eu ouvisse o grave acanhado da voz de um segundo homem, o bastante para entender que estava em companhia de mulheres eloquentes e altivas. Aproveito a deixa do companheiro e contento-me em ouvi-las, mais do que falar; raras vezes é conselho mal dado.

Não faço objeções à maioria de minhas interlocutoras; soam-me pessoas agradáveis, decididas a bem desfrutar o dia de folga em companhia de amigas queridas e de mim, eminência parda disposta a anonimamente manter o bom espírito da conversa. Discordamos em pontos-chave de assuntos relevantes, diga-se; particularmente não acho que o fechamento de fronteiras contribua para a prevenção de atos terroristas nas Olimpíadas, por exemplo. Felizmente, nada que estremeça a solidez da relação. Há, contudo, uma entre elas que me aborrece sobremaneira.

Minha antagonista é o tipo de indivíduo que parece crer que haveria irremediável silêncio se sua própria voz parasse de soar apenas por um instante. Não apenas fala mais e mais alto do que as demais, mas evidentemente acredita que o faz pelo bem da coletividade; pensa tratar-se de martírio, quando em verdade é genocídio. Tento contemporizar com alguma autocrítica; bem sei que tendo, em presença de amigos e vinho, a empolgar-me em argumentos até que os vença ou esgote a todos ao ponto de que não possam fazer nada que não fatalmente concordar com qualquer bobagem que eu sustente. Mas se eu um dia for culpado do crime de que agora sou vítima, não hesitem em entregar-me às autoridades.

Mantinha o pensamento em semelhantes rabugices, quando a genocida do andar de baixo menciona um carbonara que faria - empurrando-me desavisado à memória de um fim de tarde que vivi, em circunstâncias tão diferentes das que hoje me circundam. Tão bem comi, tão feliz bebi; falávamos baixinho, pois as palavras se bastam quando bem faladas, e há companhias com quem mesmo o silêncio é eloquente. Curioso; basta um motivo e, de repente, saudade tem gosto de carbonara e vinho tinto.

Tão singela observação foi recebida por um criado-mudo atônito e bem intencionado; mudo, ainda assim. Quem engano? Que feio é sentir forma tão simplória de inveja; deixo as meninas com seus genocídios, bem possível que a única vítima seja eu. O som que chega à minha casa nunca desceria ao churrasco delas, por mais que eu gritasse. Há assimétrica distância entre nós, cuja medida sou eu e meus poréns. Deixo-as. Mudo-me para o quarto, respiro quatro vezes, recomeço a leitura. Haverá tardes de sábado em minha vida, não duvido. Que eu não me desespere com a platitude das segundas-feiras.

Vejam só, e não é que há voz sensata que se esconde em canto qualquer desta cabeçorra? Feliz constatação. O problema é que ela se manifesta com a frequência dos cometas. Sigamos.




domingo, 12 de junho de 2016

Ainda que despidos.

Há uma meia no canto da sala que já não sei há quanto tempo lá está. Interrogo-a da última poltrona do sofá, onde resiste nesga de sol que me abrigue do frio de junho. Bastante ciente de que a encaro, ela mantém-se imóvel, orgulhosa de seu preto acinzentado pela poeira do chão, única companhia de uma existência de outra forma solitária. Em sua indiferença, parece provocar-me; se o incomodo, por que não toma atitude, o que lhe custaria mover-me, dois gestos mais decididos e pronto, seria mais uma peça de roupa submetida à higiene descuidada da máquina de lavar. Ela sabe e eu sei, contudo, que nada farei. Há dias esse conflito se desenha, e, ainda que eu por vezes tenha estado na iminência de resolvê-lo em definitivo, sempre me ocorre motivo insuspeito para nada fazer. A verdade é que estou impotente, e aceito a derrota. Há uma meia no canto da sala bastante segura de que assim permanecerá.

Que lá permaneça, então, envolta em mesquinhos mistérios. Daqui de onde a observo, não é possível dizer se, no momento em que ali se quedou, estava limpa, ou se eu havia acabado de usá-la. Estranho e triste pensamento, o de que um dia compartilhamos o mesmo sapato, e hoje nada me recordo sobre isso. Ela, por sua vez, certamente se lembra de cada um desses momentos, e talvez o que eu entenda por indiferença seja, em verdade, mágoa pelo abandono descuidado de uma relação; quem dirá que essas coisas não ocorrem? Poderia até desculpar-me, mas a pouca sinceridade me impede. Certo é que sequer percebo se ela é meia de pé direito ou esquerdo; certo é que tampouco sei dizer se essa distinção existe, ou se é coisa que arbitramos, uma vez que as vestimos; certo é que já não mereço qualquer afeto que essa meia um dia tenha sentido por mim. Mas digo, em sua defesa, que ela parece ir muito bem, obrigada. Pra muito além de filosofices de direita ou esquerda, temos aqui, no canto da sala, uma meia plenamente realizada, que não precisa de pé nenhum pra ser inteira. Do meu posto no sofá, sorrio em silenciosa admiração.

Estimo que ela esteja nesse mesmo canto há, pelo menos, três semanas, mas bem poderiam ser três séculos. Sem esforço, consigo visualizá-la defendendo intrépida, de armas em mão, este exato local da segunda leva de bandeirantes apresadores; se não podia resolver as mazelas dos indígenas, ao menos não assistiria impassivelmente, não esta meia. Mais tarde, prosperou junto aos primeiros cafeicultores do Oeste Paulista, mas não tardou a diversificar os investimentos em atividades industriais, quando percebeu insustentável o ritmo de expansão da economia cafeeira, em admirável demonstração de prudência financeira. Apesar de admirar a personalidade esclarecida do segundo Pedro, aplaudiu cautelosamente o advento da República, por saber a ininterrupta sucessão de avanços e retrocessos que se seguiria. Hoje, do canto da minha sala, lamenta a agridoce sensação de estar certa.

Faço por bem deixar de bobagens, se o que me incomoda nessa meia, em verdade, é o que ela explica de mim; pois escancara a incontornável ignorância que cultivo sobre as coisas que me são mais próximas. Anuncio resignado o quanto desconheço sobre as circunstâncias que me envolvem, mas estão além de mim - com a esperança, inclusive, de que transpareça alguma sofisticação e ares de humildade. 

Mas é com algum desespero que recebo a lembrança de que, por mais altivo que caminhe pelos anos, por mais que ostente certeza sobre os motivos que me conduzem, neste exato momento, há parte de vida que, sem que eu perceba, me abandona. Quando, em voltas e revoltas no percurso, eu tornar a encontrá-la, empoeirada e solitária em seu pedaço de chão, não saberei nem do que um dia me serviu. Desconfiado e curioso, lá a deixarei, sem mesmo saber o que estou deixando para trás. Pois bem, assim seguimos desavisados, perdendo e encontrando as roupas que caíram pelo caminho, na esperança de chegar; ainda que despidos, chegar.



segunda-feira, 11 de abril de 2016

Água parada.

Há um fantasma na cidade de Campinas. Reformulo; há ao menos um fantasma na cidade de Campinas, que em assuntos de fantasmas, temos por tudo apenas aquilo que vemos, quando tanto mais há que se revela somente a olhos que não são nossos. Em verdade, se bem pensamos, tal como ocorre com a maior parte das questões de vida e seus viventes.

Arrematemos. Há um fantasma em Campinas que tomou interesse por mim; sequer desconfio do que tenha feito, em meus modos repetidos e enfadonhos de vida, para merecer tão lúgubre atenção, mas ela me veio e a recebi desarmado, que o mesmo naco de atenção é esmola pra uns e fortuna pra outros tantos, e fortuna raramente se rejeita assim tão fácil. Perguntou-me quem era, que fazia por aqui, que carrega nessa pasta, que carrega nesses ombros; pois bem, se assim me questiona, que lhe posso dizer, sou tudo que consigo ser neste momento e nestas circunstâncias, faço o mínimo necessário e o máximo que suporto das coisas todas que se fazem, nesta pasta há miudezas de hoje, sobre os ombros, todo o resto.

Pensei que bastaria; enganava-me. Restou-se por perto, seguiu-me pelas ruas; em sua graça ectoplásmica, trespassou as paredes todas que me protegem, até aquela que guardo nos recônditos mais remotos deste sujeito em que me fiz. Entrou em casa, entrou em mim. E lembrou-me daquela forma mundana de milagre, tão rara quanto conhecida, que ocorre quando cada detalhe de nossos dias faz-se mais distinto, precioso, até mais nosso, tão somente porque alguém lhe é testemunha. Pois assim me vi de repente – mais distinto, precioso, até mais meu. Que ninguém se surpreenda com o que podem os fantasmas.

E que surpresa; também eu me interessei, genuinamente interessei-me, por tudo que envolvia minha companhia fúnebre. Perguntei-lhe sobre a morte, ele deu de ombros, disse que não haviam sido apresentados; questionei-lhe sobre a vida, essa nem morrer explica; perguntei se tivera paixões daquelas que lhe pesam um grama de morte dentro do peito, quando os profetas gritam será amor, será amor, o exército da razão demonstra ser algo menos, e pouco importa, afinal, se entre amor e algo menos há infinidade de maneiras de perder-se, se o amor é inteiro perda, se algo menos é, ele mesmo, amor. Ele respondeu que sim; claro que sim.

Aqui lhes revelo semelhança fundamental na dinâmica por que se movem, em vida e fora dela, pessoas e fantasmas; uns e outros seguem seus caminhos, e mais nenhum, ainda que, por vezes, pareçamos andar juntos um só. Veio o dia, talvez há tempos viesse, mas foi surpresa, sempre é, quando, flutuando suave, disse-me que o próximo passo que desse seria em direção diversa à que seguíamos; que minha vida era toda ela plena, vida de corpo inteiro, era vida, e vida basta; disse tanto, mas disse adeus.

Que dizer, sentirei saudade. Sei que sim, sinto-a também, ainda que diferente, mesmo em morte, ausência é dor, mas saudade escorre, meu bem, juro que escorre, e desmanchou-se tranquilo na passagem entre minha vida e as dimensões outras que habita, antes que eu pudesse protestar que não, você se engana, caro amigo. Sim, é inteira minha vida, só dói porque inteira, e seguirá sendo de formas diversas, ainda que menos distinta, preciosa, menos minha. Você peca, contudo, nas metáforas, que essas inutilidades vêm melhor aos vivos. Saudade é água parada.



*Mãe, este é um texto de ficção, não estou deprimido, Campinas não tem fantasmas, é uma cidade agradável, em verdade, é a metrópole campeã de bem-estar no país. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/08/1329494-campinas-e-a-metropole-campea-de-bem-estar.shtml

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Aqui há vida.

Já há bons minutos, eu e o apartamento nos encaramos. Recém-chegado, recorro à cortesia, deixo que fale primeiro, um alô, bem-vindo, faz-me casa, faz-me seu. Percebo, em seu silêncio, o desconcerto de expectativas frustradas, e entendo-o. Imagino que ideias não teve, durante seus meses de porta fechada, sobre o tipo de gente que o ocuparia, assim que decidissem residir na cidade de Campinas. Tem jeitos festivos, este imóvel. Sua janela é ampla e dá para outras tantas janelas e varandas, que anunciam orgulhosas, em luzes dispersas, a gente toda que as preenche. Estou certo de que ansiava pelo momento em que, numa madrugada de terça-feira, gritaria a seus pares, a pleno brilho, que Sim, meus caros, aqui há vida, aqui há vida. Se pudesse escolher, acolheria casal jovem e sem filhos, já que nele há único quarto, com amigos que insistissem por uma última música, uma última taça, em mais uma noite.

Por isso, insisto que das paredes ouvi suspiro no momento em que entrei sozinho, carregando três malas e um carrinho de livros, e encarei resignado os cômodos em que viveria. Eu entendo a decepção, digníssimo imóvel. Não tem família, esse infeliz, que o ajude na mudança e estoure o espumante, brindando às alegrias e dificuldades do primeiro lar? É assim tão miserável que não tem pelo menos uns três amigos que receba em open-house, que derrubem o vinho e saiam sem oferecer, ao menos, a gentileza de um esfregão? E que expressão apática é essa no rosto, onde deveria haver a alegria arrebatada de um jovem independente?

Bem, que posso dizer? Família tenho, próspera e querida; vivem suas escolhas, buscam a felicidade em cantos espalhados, e amo-os por essa razão e por outras. Bebida não falta que brindem por mim, e eu por eles. Amigos, você não acreditaria em como os tenho. Indivíduos que me dão o privilégio de carregar um tanto de mim em suas vidas. Sem eles, já nem bem seria. Estão por aí, pisam o mundo, alguns acompanho atento, de outros há tempos não ouço. Mas não, aqui não os tenho. E você cobra de mim alegria? Pois bem, saiba que também a cobro, não duvide. Não me tenha por tipo lacrimoso, dado a melancolias gratuitas. Sou grato; tenho dinheiro que me compra os dias, tenho objetivos que me sustentam o ano e, oras, tenho você, um apartamento simpático onde moro com recursos meus. Mas não se espante com certo enfado, você há de notar que ando sozinho; trouxe comigo, mais do que malas e livros, saudades e receios. Receio de não conseguir, saudade de quem não tenho perto.

Nesse instante, os armários embutidos da sala rangem: “e quem não?”. Bem verdade, mas vá pastar.

Se estamos sendo sinceros, saiba que tampouco você me satisfaz plenamente. Tive sonhos, imagine, sobre o lugar onde primeiro fincaria pés, bateria estaca e chamaria casa. As pessoas todas cuja falta você notou, saiba que eu a noto mais. Culpo-o, em partes; culpo-o por estar em cidade que não escolhi, ocupado por objetos que não comprei, vazio de companhias que não tenho. Concordo com você; tão melhor seria tê-lo cheio, vigoroso no ruído das conversas exaltadas. Faltou cadeira! Sento no chão, a casa é de vocês. Tem vinho? Tanto quanto há sede, beba contente, minha amiga. Em conversas distantes, onde estivesse ausente, vez por outra seria dito “É sexta-feira, vamos lá em Daniel”. Mas mal o conheço, seria estranho? De forma alguma; venham, venham todos, venham sempre, que solidão é bicho pra se matar como a César, a quarenta mãos. Que injusto que é culpar vivente por ser quem quer que ele seja. Reconheço que sim, mas você me pegou emotivo.

Caro apartamento, certo é que necessitamos trégua. Eu o quero casa, você me quer vida. De minha parte, proponho meus termos. Sim, a maior parte dos meus dias será cozida em melancólico banho-maria; não há emoção aparente em livros e questões. Haverá momentos, sei que haverá, em que sucumbirei sob a pasmaceira do desânimo; quando for o caso, peço compreensão, favor não queimar a resistência do chuveiro. A louça, lavo depois. Por outro lado, ofereço minhas garantias. Não há de faltar, dia que seja, boa música que receba a manhã e se despeça da noite. A cozinha será minha aventura; a cada mês, prometo nova habilidade que lhe perfumará o teto. Na maior parte das semanas, seremos eu, você e nossos diálogos. Mas, quando houver companhia, eu lhe juro, será recebida de garrafa aberta, e, se houver quem toque, acordaremos os vizinhos com o violão desafinado. Aqui há vida, aqui há vida.

De você, só lhe peço paciência – essa também peço de mim. Aos poucos, desatentos, faremos de nós saudade a decorar outras paredes que me recebam.