O celular informou-me que, parabéns, eu correra o quilômetro cento e cinquenta neste ano. Cento e cinquenta quilômetros corridos no Centro de Convivência da cidade de Campinas, cuja volta estimo medir coisa de setecentos metros. Duzentos e quatorze voltas, em um único ano, em uma mesma praça. Afora o equilíbrio calórico precariamente mantido, era de se esperar que atividade repetida poucas centenas de vezes resultasse em alguma excelência, mas que nada - ocorrem-me as mesmas dores, o mesmo cansaço, a mesma sensação de falta de sentido em lutar contra a degradação da matéria, a mesma vontade de comprar uma cerveja e praticamente anular a meia-hora de exercício que passou. De novo, em verdade, apenas a reflexão sobre os números e as medidas que uso para explicar os fatos e processos da vida. Ou seja, absolutamente nada de útil, mas estiquemos essa inutilidade ao limite.
Em menos de um mês, completo minha vigésima-oitava volta ao redor do Sol. Nessa corrida, não tenho qualquer ambição de atingir excelência; se eu reduzir novos erros e evitar repetir os antigos, dou-me por satisfeito antes de atravessar a linha de chegada - ou de ser atravessado por ela, que as formas de morte são variadas e criativas. Admito que vinte e oito voltas não é muito, mas acontece que a vida traz mais dores, cansaço e falta de sentido do que qualquer praça de Campinas - e a mesmíssima vontade de abrir uma cerveja no fim do dia. Sigo correndo, e, se eu lhe parecer esgotado, é só fadiga. Respiro; sigo correndo.
Em cinco cidades fiz casa nesse punhado de anos. Em São Paulo, mal entendi que nascera e já parti; de Pelotas, levei um irmão. Em Recife, deixei vinte e cinco anos, incontáveis lembranças e uma saudade que me draga de volta como a maré de Boa Viagem - também a saudade tem seus tubarões -, sempre que posso e nem sempre quando preciso. Aprendi em Tübingen que o mundo se pisa. Campinas me deu meios para viver e me ensinou que não há meio de se viver só. Uma poltrona mais assanhada aqui de casa adivinha o que me passa à cabeça e me encara, como se questionasse - mas já se vai? Ah, meu bem, se é pra ser sincero, confesso que nunca cheguei. Um carrinho de compras bastou onde coubesse tudo o que eu levava quando entrei pela primeira vez por esta porta; contudo ainda não achei onde enfiar a solidão que entrou comigo naquela noite de janeiro.
Números? Números, então. Vinte e uma malescritas vezes publiquei neste cantinho confessional, o que resulta em média de escritor preguiçoso. Gostaria de dizer que o tempo é bem aproveitado em outras áreas, mas meu diletantismo é direcionado às causas mais inúteis. Mesmo com toda a preguiça e o comodismo, cultivo certo orgulho mesquinho dos quatro mil seiscentos e quarenta e três acessos de que desfrutaram, até hoje, estas páginas, ainda que ativamente ignore a porcentagem desses acessos por que sou, eu mesmo, responsável. De toda forma, sou sincera e excessivamente grato por cada visita, e todo elogio perdido recebo como se me entregassem o prêmio Camões e um milhão de dólares. Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta obrigados para cada leitor destes tristes textos.
Porque a vida não hesita em correr adiante, porque sou novo demais para estar memorialista, tenho me interessado, mais e mais, pelo número zero, por tudo que fiz vez nenhuma, por cada vazio que aguarda ser preenchido por saudosos algorismos. O risoto - ou era penne?, talvez seja penne - de salmão defumado que nunca comi. Aquela vez em que a mera visão do templo de Garni abalou meu bem fundado ceticismo, e deixei a Armênia prometendo não voltar, apenas por covardia. Nunca tive cão chamado Toboso ou filho chamado Theo. Mas, diria amigo ou amiga querida, ateu tão safado com filho desse nome? É mais uma prova de que deus foi feito pelo homem, responderia de caso já pensado - ririam conformados, coisas de Daniel, enquanto Toboso observava de um canto da sala, indiferente às pessoas e suas vaidosas ironias.
Nada disso aconteceu e, nesta tarde abafada de nuvens indecisas, posso apenas especular sobre os números que, somados, me presentearão com motivo para escrever; ou, ainda melhor, para não o fazer. Até lá, zero, redondamente zero.