Há um fantasma na cidade de
Campinas. Reformulo; há ao menos um fantasma na cidade de Campinas, que em
assuntos de fantasmas, temos por tudo apenas aquilo que vemos, quando tanto
mais há que se revela somente a olhos que não são nossos. Em verdade, se bem
pensamos, tal como ocorre com a maior parte das questões de vida e seus
viventes.
Arrematemos. Há um fantasma em
Campinas que tomou interesse por mim; sequer desconfio do que tenha feito, em
meus modos repetidos e enfadonhos de vida, para merecer tão lúgubre atenção,
mas ela me veio e a recebi desarmado, que o mesmo naco de atenção é esmola pra
uns e fortuna pra outros tantos, e fortuna raramente se rejeita assim tão fácil.
Perguntou-me quem era, que fazia por aqui, que carrega nessa pasta, que carrega
nesses ombros; pois bem, se assim me questiona, que lhe posso dizer, sou tudo
que consigo ser neste momento e nestas circunstâncias, faço o mínimo necessário
e o máximo que suporto das coisas todas que se fazem, nesta pasta há miudezas
de hoje, sobre os ombros, todo o resto.
Pensei que bastaria; enganava-me.
Restou-se por perto, seguiu-me pelas ruas; em sua graça ectoplásmica, trespassou
as paredes todas que me protegem, até aquela que guardo nos recônditos mais
remotos deste sujeito em que me fiz. Entrou em casa, entrou em mim. E lembrou-me daquela forma mundana de
milagre, tão rara quanto conhecida, que ocorre quando cada detalhe de nossos
dias faz-se mais distinto, precioso, até mais nosso, tão somente porque alguém
lhe é testemunha. Pois assim me vi de repente – mais distinto, precioso, até
mais meu. Que ninguém se surpreenda com o que podem os fantasmas.
E que surpresa; também eu me interessei,
genuinamente interessei-me, por tudo que envolvia minha companhia fúnebre.
Perguntei-lhe sobre a morte, ele deu de ombros, disse que não haviam sido
apresentados; questionei-lhe sobre a vida, essa nem morrer explica; perguntei
se tivera paixões daquelas que lhe pesam um grama de morte dentro do peito,
quando os profetas gritam será amor, será amor, o exército da razão demonstra
ser algo menos, e pouco importa, afinal, se entre amor e algo menos há
infinidade de maneiras de perder-se, se o amor é inteiro perda, se algo menos
é, ele mesmo, amor. Ele respondeu que sim; claro que sim.
Aqui lhes revelo semelhança
fundamental na dinâmica por que se movem, em vida e fora dela, pessoas e
fantasmas; uns e outros seguem seus caminhos, e mais nenhum, ainda que, por
vezes, pareçamos andar juntos um só. Veio o dia, talvez há tempos viesse, mas
foi surpresa, sempre é, quando, flutuando suave, disse-me que o próximo passo
que desse seria em direção diversa à que seguíamos; que minha vida era toda ela
plena, vida de corpo inteiro, era vida, e vida basta; disse tanto, mas disse
adeus.
Que dizer, sentirei saudade. Sei
que sim, sinto-a também, ainda que diferente, mesmo em morte, ausência é dor,
mas saudade escorre, meu bem, juro que escorre, e desmanchou-se tranquilo na
passagem entre minha vida e as dimensões outras que habita, antes que eu
pudesse protestar que não, você se engana, caro amigo. Sim, é inteira minha
vida, só dói porque inteira, e seguirá sendo de formas diversas, ainda que
menos distinta, preciosa, menos minha. Você peca, contudo, nas metáforas, que
essas inutilidades vêm melhor aos vivos. Saudade é água parada.
*Mãe, este é um texto de ficção,
não estou deprimido, Campinas não tem fantasmas, é uma cidade agradável, em
verdade, é a metrópole campeã de bem-estar no país. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/08/1329494-campinas-e-a-metropole-campea-de-bem-estar.shtml
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