Depois de certa quantidade de anos sobre a terra, toda informação inédita é recebida em referência às outras que já levamos conosco; elas nos transformam, mas também as fazemos nossas no processo. Até uns dezessete anos, contudo, nossa cabeça é matéria amorfa e flexível - cada nova ideia a define de maneira irrevogável. Foi nessa infeliz idade que li "A Náusea", de J. P. Sartre, e fui sentenciado a uma vida de pensamentos modorrentos. Pois, em determinado momento do romance, o protagonista conclui: "todo vivente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso".
O impacto dessa ideia sobre mim não se bem ilustra com grande barulho, com bums ou pâns, mas com prolongado suspiro que nem sei se já cessou; capaz de ter-me acostumado a ele, de que faça parte do som ambiente de minha cabeça em ponto-morto. Essas doze palavras me foram tatuadas na retina. Inclusive, bom dizer, transcrevo-as apenas por estar convicto de que ninguém abaixo de dezoito anos leria estas linhas - em verdade, tampouco ninguém acima, mas deixem-me com meu público fictício - de outra forma, não seria tão irresponsável.
Retorno: tomei essa ideia por regra, regra que se dividiu em preocupante variedade de subnormas e quaseverdades, todo um melancólico ordenamento jurídico responsável, tão somente, a interpretar e dar sentido a cada fato e pensamento que me ocorria. Compartilho agora alguns deles. A princípio, não me preocupavam especialmente nascer sem razão e morrer por acaso; julgava que pouco podia fazer sobre as extremidades do percurso - uma existência em fraqueza, por outro lado, tornou-se pano de fundo dos meus dias. Não apenas dos maus momentos - a tristeza desses é evidente e redundante; mas, e principalmente, também dos bons. Passei a buscar com lupa, em cada vitória e glória diminuta, a parcela de fraqueza que as maculava. Não apenas nas minhas - se ao menos limitasse essa visão ao meu mundinho, teria poupado a mim e aos próximos algumas lamentáveis decepções - mas nas das pessoas mais queridas; escrevi em meu diário, à época, que me tornava farejador de frustrações, o que é uma péssima raça de cachorro para lugares fechados e abertos.
Tentei catar fraqueza no amor, imagine o infeliz! E tive sucesso. Não conseguia me decidir sobre o que era perna e o que era muleta. O que levava comigo e o que me era levado. Paranoia e sua prima insegurança são visitas ingratas para um casal. E o amor prolongou-se por fraqueza, mas não por acaso se desfez. Ainda hoje, se me lembro desses dias confusos, sinto doída compaixão pelo garoto que fui, pelos erros que não conseguiria corrigir. Gostaria de chegar junto e dizer-lhe que é difícil, mas não tanto; que a fraqueza do amor se desfaz a quatro mãos; que são um casal, mas são inteiros, e não as metades de um quebra-cabeças de duas peças. Paciência. Repito comigo essas palavras e guardo as estrelas. Algo virá.
Com o tempo, talvez por tornar-me um tanto - um pouco? - mais seguro em minhas circunstâncias, passei a brincar com a ideia, já que não poderia esquecê-la. E se houvesse quem nascesse por acaso, se prolongasse sem razão e morresse por fraqueza? Não me soava improvável; era até bastante verossímil. Não há acaso maior do que o novelo de probabilidades que precede a existência; uma vida sem razão não é algo tão diferente do que estatisticamente já ocorre; e um momento de fraqueza antes da extinção é preferível a algumas dezenas de anos. Ou, ainda, se seguimos a sequência, nascer por fraqueza, prolongar-se por acaso e morrer sem razão? Também não soa tão absurdo. Morrer por nascer, sem razão porque ao acaso, fraquejado por prolongar-se? Tampouco. Em verdade, pergunto-me se há grandes diferenças entre essas alternativas, ou entre todas as alternativas possíveis. Arriscaria dizer que não, mas não me chamo Sartre, sou apenas Daniel e prolongo-me por fraqueza, sem razão. Como neste texto.
Recentemente, já que acaso não houve que me matasse, decidi barganhar com a noção. Desisti de desmenti-la - creio que nunca realmente tentei - mas há brechas a serem exploradas. Penso que, se nunca deixar de nascer, posso pular ao acaso diretamente do sem sentido, dispensando uma existência de fraqueza. Parece-me razoável solução. Como fazê-lo? Não saberia exatamente. Mas tento, juro que tento. Tento que meus dias se pintem de novas cores, ou ao menos de um novo tom de bege; se as rimas não forem raras, que sejam ordinárias, que nem rimem, mas que haja qualquer poesia; que o suspiro em minha cabeça, já que não cessa, ao menos alcance notas mais altas, que antecipe um gran finale, que me surpreenda enfim com grito histérico ou súbito silêncio. Juro que tento, nem sempre consigo; mas há dias em que me vem um gosto danado de vida nova.
Andava em paz com a tragédia existencialista dos franceses, com a falta de sentido da existência, com o silêncio de deus; meus problemas hoje têm rosto, têm perguntas de múltipla escolha, têm endereço. Foi doce poder olhar para mim, alguns anos atrás, e identificar quais ideias me conduziram e me trouxeram até aqui. No final das contas, poderia ter sido pior - essa constatação, se não é gloriosa, tem suas virtudes - e eu andava mais leve em face de questões tão prodigamente inúteis. Até que no almoço deste domingo ouvi a irrefutável verdade de que "o destino de toda célula é o câncer ou a senescência", e aceito sugestões de psicanalistas competentes que caibam no orçamento de um servidor público.
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