domingo, 12 de junho de 2016

Ainda que despidos.

Há uma meia no canto da sala que já não sei há quanto tempo lá está. Interrogo-a da última poltrona do sofá, onde resiste nesga de sol que me abrigue do frio de junho. Bastante ciente de que a encaro, ela mantém-se imóvel, orgulhosa de seu preto acinzentado pela poeira do chão, única companhia de uma existência de outra forma solitária. Em sua indiferença, parece provocar-me; se o incomodo, por que não toma atitude, o que lhe custaria mover-me, dois gestos mais decididos e pronto, seria mais uma peça de roupa submetida à higiene descuidada da máquina de lavar. Ela sabe e eu sei, contudo, que nada farei. Há dias esse conflito se desenha, e, ainda que eu por vezes tenha estado na iminência de resolvê-lo em definitivo, sempre me ocorre motivo insuspeito para nada fazer. A verdade é que estou impotente, e aceito a derrota. Há uma meia no canto da sala bastante segura de que assim permanecerá.

Que lá permaneça, então, envolta em mesquinhos mistérios. Daqui de onde a observo, não é possível dizer se, no momento em que ali se quedou, estava limpa, ou se eu havia acabado de usá-la. Estranho e triste pensamento, o de que um dia compartilhamos o mesmo sapato, e hoje nada me recordo sobre isso. Ela, por sua vez, certamente se lembra de cada um desses momentos, e talvez o que eu entenda por indiferença seja, em verdade, mágoa pelo abandono descuidado de uma relação; quem dirá que essas coisas não ocorrem? Poderia até desculpar-me, mas a pouca sinceridade me impede. Certo é que sequer percebo se ela é meia de pé direito ou esquerdo; certo é que tampouco sei dizer se essa distinção existe, ou se é coisa que arbitramos, uma vez que as vestimos; certo é que já não mereço qualquer afeto que essa meia um dia tenha sentido por mim. Mas digo, em sua defesa, que ela parece ir muito bem, obrigada. Pra muito além de filosofices de direita ou esquerda, temos aqui, no canto da sala, uma meia plenamente realizada, que não precisa de pé nenhum pra ser inteira. Do meu posto no sofá, sorrio em silenciosa admiração.

Estimo que ela esteja nesse mesmo canto há, pelo menos, três semanas, mas bem poderiam ser três séculos. Sem esforço, consigo visualizá-la defendendo intrépida, de armas em mão, este exato local da segunda leva de bandeirantes apresadores; se não podia resolver as mazelas dos indígenas, ao menos não assistiria impassivelmente, não esta meia. Mais tarde, prosperou junto aos primeiros cafeicultores do Oeste Paulista, mas não tardou a diversificar os investimentos em atividades industriais, quando percebeu insustentável o ritmo de expansão da economia cafeeira, em admirável demonstração de prudência financeira. Apesar de admirar a personalidade esclarecida do segundo Pedro, aplaudiu cautelosamente o advento da República, por saber a ininterrupta sucessão de avanços e retrocessos que se seguiria. Hoje, do canto da minha sala, lamenta a agridoce sensação de estar certa.

Faço por bem deixar de bobagens, se o que me incomoda nessa meia, em verdade, é o que ela explica de mim; pois escancara a incontornável ignorância que cultivo sobre as coisas que me são mais próximas. Anuncio resignado o quanto desconheço sobre as circunstâncias que me envolvem, mas estão além de mim - com a esperança, inclusive, de que transpareça alguma sofisticação e ares de humildade. 

Mas é com algum desespero que recebo a lembrança de que, por mais altivo que caminhe pelos anos, por mais que ostente certeza sobre os motivos que me conduzem, neste exato momento, há parte de vida que, sem que eu perceba, me abandona. Quando, em voltas e revoltas no percurso, eu tornar a encontrá-la, empoeirada e solitária em seu pedaço de chão, não saberei nem do que um dia me serviu. Desconfiado e curioso, lá a deixarei, sem mesmo saber o que estou deixando para trás. Pois bem, assim seguimos desavisados, perdendo e encontrando as roupas que caíram pelo caminho, na esperança de chegar; ainda que despidos, chegar.



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