sexta-feira, 2 de março de 2018

Querer querer

Lembro um garoto em Recife que nascera São Paulo, que falava São Paulo, que viveria São Paulo. Eu lembro. Hoje faz um ano que contrato de locação me permite chamar casa esse apartamento de 48 metros quadrados na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que fica em São Paulo, no estado de São Paulo. Pergunto-me se este homem, que toda manhã tropeça no piso de taipa mal encaixado, é filho da vontade que um dia teve o garoto que passava calor em Pernambuco. Deve ser. Vontades são criaturas de braços longos, invisíveis, subterrâneos - em uma das mãos leva o afago; na outra, um cascudo.

Gosto desse apartamento. Há certa humildade em suas formas quadradas, em como não deseja qualquer protagonismo; ele observa a tudo com feições neutras, estou aqui, fique à vontade. Se eu lhe mudo as paredes, se o encho de poltronas, dá de ombros; é assim, está bem assim. Gosto ainda mais dele depois que a casa se encheu de visitas. Visitas são criaturas com olhos de cores inéditas; só de passarem pela porta, de repente há um percebimento todo novo. Vocês já viram como a luz da manhã entra no meu quarto em um mural de quadradinhos? Pois é; uma visita me mostrou. Quando elas partem, deixam-me mais sábio e mais saudoso.

Contudo nesse apartamento falta canto onde vivam minhas vontades; não as encontro, perderam-se na mudança. Devo ter esquecido de lhes dar as direções; alguém pode muito bem ter roubado as direções de mim. Em verdade, mais provável é que tenhamos nos desencontrado, assim simplesmente. Vontades são criaturas de pernas curtas e trôpegas; não raro cometemos a injustiça de esperar que elas acompanhem nossa passada. Se a vida corre, e eu com ela, devo saber que algumas delas ficarão pelo caminho. Pena; ultimamente tenho sentido uma falta danada de querer.

A vida é antes crônica das nossas vontades do que de conquistas a que eventualmente chegamos, penso por bem dizer. Porque um dia aquele garoto em Recife quis, hoje completo um ano do meu apartamento quadrado na cidade de São Paulo. Porque um homem em São Paulo não quer estar só, cultivo visitas e suas singelas novidades. Está bem, há paz e uma vista decente daqui do décimo-terceiro andar. O outono se anuncia e os dias já vão mais frescos. Mas que as vontades estejam avisadas - aqui em casa haverá sempre para elas um cantinho, uma gaveta, um coração. Podem vir.

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