domingo, 18 de março de 2018

Gostar de mim

Tenho um amigo, desses que no meu coração há uma avenida em seu nome, que convive desde a infância com forma aguda de ansiedade. Ela permeia e incomoda aspectos diversos de seus dias. É divertido ouvi-lo falar dos mecanismos de controle a que recorre, com a ironia e o estoicismo que já lhe são segunda natureza. Contou-me que medita todos os dias assim que acorda; também diariamente ingere um grama e tanto de remédio com nome estrangeiro e hostil; pratica natação; evita carboidratos; aos sábados e domingos, preenche cadernos sobre o próprio estado mental. Tudo isso me soou cansativo e excêntrico. Lembrei-lhe de que estou à disposição, mudamos de assunto.

Outra amiga - querida, tão querida - recentemente vivenciou profundo luto. Decidiu então que era tempo de promover relançamento de seus modos de vida, dos meandros pelos quais sentia o mundo, e era por ele sentida. Buscou vivências; entrou em contato com o sagrado feminino; ofereceu a aura para que fosse lida; entendeu o céu; aprendeu ajudar a nascer. Nadando de braçada na piscina turva do ceticismo, tive por bem apoiá-la em seus caminhos, mas não me esforcei para esconder certo espanto, nem que fosse por uma questão de princípios.

Ano passado minha alma teve cãibras. A vida ficou toda ela um tanto contraída, a ousadia de se mexer doía. Fiquei parado, estive parado. A cabeça deu-se a praticar tipo mesquinho de dialética - para cada ideia que brotava sobre próximos passos, era produzida anti-ideia, tão sofisticada quanto. Tornei-me exausto por operações de soma-zero. Custei a concluir o que hoje me parece óbvio - sozinho já não dava conta das demandas com que eu me presenteava.

Busquei uma terapeuta. Duas vezes por semana, deito no divã e submeto-me a golpes de psicoanálise. O salário apequenou-se. Há dias em que saio da sessão pronto para entregar meu cérebro a um grupo de estudos sobre causas perdidas, pelo progresso da ciência. Há outros, contudo, em que deixo a sala com preciosas constatações, algumas até gentis. Por vezes, sem que eu mal perceba, minha voz torna a fazer sentido, e uma ideia é só uma ideia, mas inteira e com ares de produtiva. Bem-vinda. Aos poucos, em processo lento e irregular - fique calmo, como não seria? - recupero alguma forma de protagonismo sobre a vida e as possibilidades que se me apresentam. A alma não reclama de alongar-se.

Acima de tudo, descobri forma bonita de gostar de mim. Não compreendo a psicoanálise e seus funcionamentos, nada tenho a apresentar por resultados concretos. Mas a decisão de frequentá-la foi prova de que mereço cuidado. Um gesto humilde - para cuidar de mim, foi necessário renunciar à vaidade de bastar-se. Não me basto, mas me tenho carinho. Zelo por mim como zelava pelos outros aspectos de minha vida. Cuidar de mim como forma de amor-próprio.

É sem qualquer cinismo que hoje sinto a mais profunda admiração pelos amigos de que falei. Não somente - por cada pessoa que decidiu ser merecedora do próprio carinho. Meditação, diários, terapia, misticismo; para além de resultados, para além do método, há mérito em buscar maneira qualquer de se colocar em evidência. E parabéns; verdade é que a vida apresenta motivos suficientes para que não raro esqueçamos disso.

Respiro. O caminho é longo, espero que longo, não pretendo que ele tão cedo acabe. Por ora, conto as moedas no banco e aprendo a curtir a novidade singela que é gostar de mim.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Querer querer

Lembro um garoto em Recife que nascera São Paulo, que falava São Paulo, que viveria São Paulo. Eu lembro. Hoje faz um ano que contrato de locação me permite chamar casa esse apartamento de 48 metros quadrados na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que fica em São Paulo, no estado de São Paulo. Pergunto-me se este homem, que toda manhã tropeça no piso de taipa mal encaixado, é filho da vontade que um dia teve o garoto que passava calor em Pernambuco. Deve ser. Vontades são criaturas de braços longos, invisíveis, subterrâneos - em uma das mãos leva o afago; na outra, um cascudo.

Gosto desse apartamento. Há certa humildade em suas formas quadradas, em como não deseja qualquer protagonismo; ele observa a tudo com feições neutras, estou aqui, fique à vontade. Se eu lhe mudo as paredes, se o encho de poltronas, dá de ombros; é assim, está bem assim. Gosto ainda mais dele depois que a casa se encheu de visitas. Visitas são criaturas com olhos de cores inéditas; só de passarem pela porta, de repente há um percebimento todo novo. Vocês já viram como a luz da manhã entra no meu quarto em um mural de quadradinhos? Pois é; uma visita me mostrou. Quando elas partem, deixam-me mais sábio e mais saudoso.

Contudo nesse apartamento falta canto onde vivam minhas vontades; não as encontro, perderam-se na mudança. Devo ter esquecido de lhes dar as direções; alguém pode muito bem ter roubado as direções de mim. Em verdade, mais provável é que tenhamos nos desencontrado, assim simplesmente. Vontades são criaturas de pernas curtas e trôpegas; não raro cometemos a injustiça de esperar que elas acompanhem nossa passada. Se a vida corre, e eu com ela, devo saber que algumas delas ficarão pelo caminho. Pena; ultimamente tenho sentido uma falta danada de querer.

A vida é antes crônica das nossas vontades do que de conquistas a que eventualmente chegamos, penso por bem dizer. Porque um dia aquele garoto em Recife quis, hoje completo um ano do meu apartamento quadrado na cidade de São Paulo. Porque um homem em São Paulo não quer estar só, cultivo visitas e suas singelas novidades. Está bem, há paz e uma vista decente daqui do décimo-terceiro andar. O outono se anuncia e os dias já vão mais frescos. Mas que as vontades estejam avisadas - aqui em casa haverá sempre para elas um cantinho, uma gaveta, um coração. Podem vir.