sábado, 9 de maio de 2015

Ódios privados em espaços públicos.

E meu Recife é notícia, por razões mais e menos virtuosas. Arrisco um nanorresumo aos desavisados, e que me perdoem desde já as simplificações e ausências que sem dúvida cometerei*. Cais José Estelita, imenso terreno no centro histórico da cidade, há anos relegado ao esquecimento da paisagem. Foi ele adquirido, em leilão ilegal, por consórcio de poderosas empreiteiras e seus poderosos amigos. Também ilegalmente, aprovam o projeto para o local, cuja inteligência se resume em previsíveis treze torres e seus mais de trinta andares. Setores da sociedade civil organizam-se e ocupam o terreno, impedindo o início das obras; lá permanecem por quarenta dias, resultando na reanálise de partes do projeto pelas instâncias legais e administrativas. Um ano depois, ou semana passada, a cidade viveu inédita harmonia entre seus poderes: em sessão urgente e oculta, o projeto foi aprovado pela Câmara e sancionado, na mesma noite, pelo Executivo. Os mesmos setores civis reorganizaram-se em reação ao milagre legislativo e, até esta manhã, ocupavam a rua onde mora o prefeito, sua família e seus vizinhos. O destino do local resta incerto; sigamos. O parágrafo ficou maior e mais do gordo do que geralmente espero para estas linhas; não raro na vida, contudo, a verdade deve prevalecer em detrimento da estética.

Foi Milton Santos quem proferiu sentença; espaço geográfico é o conjunto da paisagem e da vida que a anima. Recife recebeu o raro presente de sua paisagem. Faz pensar, porém, a vida que se planeja impor-lhe, e o que ela diz sobre nós. Sobre as treze tristes torres - agora repita ligeiro; é difícil, mas deveria ser impossível - nada que eu escreva teria a qualidade do que já foi escrito. Hoje, contudo, quando os galpões do Estelita ainda resistem e o futuro nada é, que não horizonte de possibilidades, são outras construções, mais humanas e mesquinhas, que me perturbam este sábado tão bonito. A forma do diálogo e os modos do discurso. Pois o outro, assim como hoje ocorre em qualquer discussão relevante em cada cidade deste nosso judiado país, torna-se inimigo. Não há diferença que não seja desdenhada; não há conflito que não seja ofensa. Há exceções; exceções haverá sempre. Mas a voz que se destaca, no murmúrio das boas intenções, é uma de virtuosa raiva, gritada e cheia de certezas. A paisagem recifense se preenche de cinismo, e onde havia o cais, eu vejo apenas um muro.

"Mais amor, por favor". Bobagem. Amor é o que de humano mais se assemelha a milagre, e exigir que o sintamos por estranhos é delírio da mente dos loucos ou da soberba dos deuses. É necessário respeito e tolerância. A retórica impossível do amor generalizado, contudo, interessa tão somente às frases ligeiras das redes sociais; aos produtos da publicidade; à demagogia dos virtuosos. De resto, cria apenas a frustração de se exigir o improvável ao aparato humano; o que nos é mais natural é temer o diferente e odiar o que tememos. Surpresa alguma, portanto, o estado das coisas recifenses. O que desanima e alimenta o pessimismo, no entanto, é qualquer coisa de non sense na discussão travada; uma distorção de sentido que mistifica e confunde. Pois quero crer que, excluídos potenciais moradores e os titulares das contas que engordariam com o empreendimento, uma minoria de fato é a favor do projeto, tal qual apresentado. O que se discute, em boa parte das vezes em que se discute o Estelita, não é um projeto imobiliário, mas muito do que hoje nos faz uma nação dividida. A ilusão de ideologias partidárias, os interesses de poder individuais, em um espesso caldo de paranoia e desinformação. É diferença, é medo, é ódio. Cá comigo, brinco com a triste ideia de que, em ambientes políticos mais amenos, o recifense rejeitaria em uníssono o projeto, e o Novo Recife voltaria a ser apenas fantasia doente nas infelizes cabeças que o pariram.

Volto ao ódio, e faço dele mais um, entre tantos e melhores argumentos contrários ao projeto. Pois, se é verdade que teremos sempre nossos ódios privados, penso que até eles estarão melhores se cultivados em espaços públicos. Não há melhor remédio para o medo do que a convivência com o diferente; compartilhar com o outro, esse inacessível universo, o mesmo chão de uma mesma praça - e aqui me serve tanto a metáfora como a precisão de sentido - faz dele algo menos alienígena. Aos poucos, com um tanto de boa fé, a diferença se desmistifica, e onde havia medo, há respeito e aprendizado. E, permito-me o otimismo, sentiríamos de ódio apenas o mínimo essencial que nos faz humanos. Ou não; subamos as torres, vamos às armas, bastemo-nos em nós. Do outro, vejamos apenas a sombra que sobre eles projetamos. Triste fim; triste Recife. Ficaremos solitariamente chafurdando na inesgotável bacia de nossa própria estupidez.




*A seriedade da causa pede, e remeto-lhes links cujos conteúdos tratam da situação com a seriedade que me seria impossível: 
Página do grupo Direitos Urbanos: https://www.facebook.com/groups/direitosurbanos/
Site do Direitos Urbanos: https://direitosurbanos.wordpress.com/
Site do Movimento Ocupe Estelita: www.ocupeestelita.com.br
Propostas alternativas para o local: http://www.ocupeestelita.com.br/estudos-2/

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Resenha: Memórias, George F. Kennan.

*Texto originalmente publicado no E-Internacionalista.


As relações internacionais são o palco principal onde conflitam e cooperam as atuações estatais, guiadas por interesses que ultrapassam o tempo de vida das pessoas que as compõem, tornando-as, tantas vezes, invisíveis e quase dispensáveis. Não raro, contudo, há indivíduos cuja obra condiciona diretamente os rumos do Estado a que servem. No Brasil, é impossível dissociar os nomes de José Maria da Silva Paranhos, ou de Azeredo da Silveira, da atuação internacional brasileira de seus respectivos tempos. Os EUA do pós-Segunda Guerra, por sua vez, devem a George F. Kennan os moldes da diplomacia norte-americana durante os períodos mais críticos da Guerra Fria, principal idealizador da política de contenção que levaria, pode-se argumentar, à implosão soviética, quarenta anos mais tarde. Suas “Memórias” (Editora Topbooks, 2014, tradução de Vera Giambastiani e Antonio Sepulveda) são o mais preciso testemunho da gênese de suas ideias e de sua trajetória.
Costuma-se mencionar Kennan como expoente do realismo nas relações internacionais, linha teórica que privilegia em suas análises a atuação eminentemente estatal e a busca pelo equilíbrio de poder, em oposição às teses liberais de cooperação entre Estados e de ênfase às Organizações Internacionais. De fato, discordou do “caráter universal dos compromissos que implicava” a formulação da Doutrina Truman, em seu “dever de apoiar os povos livres que estejam resistindo à sujeição por minorias armadas ou pressões externas”, remontando à primazia americana primeiro idealizada por Woodrow Wilson. Para ele, o auxílio norte-americano deveria se dar após profunda e objetiva análise de cada caso, sopesada a variedade de fatores envolvidos e chances objetivas de eficácia; seria justificado no caso da Grécia, por exemplo, mas nunca em favor da China ou Iugoslávia. Da mesma forma, ainda que posteriormente viesse a rever sua posição original, suas ressalvas, à época da criação das Nações Unidas, representam precisa descrição do pensamento realista, pelo que interessa transcrevê-las na íntegra:
“Se pelo menos o status quo puder ser rigidamente preservado, não haverá mais guerras na Europa, e o problema europeu, pelo que toca ao nosso país, estaria resolvido. Esse raciocínio, que confunde sintomas com enfermidade, não é novo. Serviu de base para a Santa Aliança, para a Liga das Nações, e numerosas outras estruturas políticas criadas por nações que estavam, no momento, satisfeitas com a configuração internacional e não a desejavam diferente. Essas estruturas sempre serviram ao fim para o qual foram desenhadas – desde que os interesses das Grandes Potências lhes dessem substância e realidade. Quando essa situação mudava, no momento em que se tornava do interesse de uma ou outra das Grandes Potências alterar o status quo, nenhum tipo de estrutura erguida por tratado jamais foi obstáculo para essas alterações. A vida política internacional é algo orgânico, e não mecânico. Sua essência é a mudança; e os únicos sistemas para uma regulamentação da vida internacional que pode ser eficazes por longos períodos são os suficientemente sutis e flexíveis de modo a se ajustarem às constantes mudanças de interesse e poder dos diversos países interessados”.
Não surpreende, portanto, que algum dos mais contundentes elogios que a ele se dirigem venham das palavras de Henry Kissinger, para quem Kennan foi “um dos mais importantes, complexos, comoventes, desafiadores e exasperantes servidores americanos”. Lamenta, contudo, notar que, para a atual geração de internacionalistas americanos, Kennan tenha sido relegado a um vago passado, injustiça que passa a ser desfeita pela publicação da presente obra.
Tanto quanto os desdobramentos em High Politics de sua vida, a leitura de seumemoir é indispensável pela redescoberta do homem. Em prosa clara e elegante, bem retratada pela tradução brasileira, fica evidente a voracidade intelectual com a qual se debruçava Kennan por sobre qualquer matéria com que se envolvesse. Em sua longa estada na Rússia, nas décadas de 1930 e 40, aprendeu à perfeição o idioma, com intenso contato com a literatura e a historiografia do país, por meio do que adquiriu inédita intimidade, entre os estadistas americanos, com a natureza singular da política e do povo russos, registrada com poesia e afeto. Destacam-se, entre suas anotações, as impressões de um homem russo sobre o caráter nacional: “Quanto mais êxito tivermos, menos nos importará a opinião estrangeira. Isso é algo que vocês devem ter em mente sobre os russos. (…) Somente em condições desfavoráveis somos humildes, brandos e conciliatórios. Quando bem sucedidos, saiam da frente”.
A singular experiência russa foi responsável direta por aquelas que, provavelmente, foram suas principais contribuições para a política externa norte-americana: o “Longo Telegrama” e o “Artigo X”. O primeiro documento foi escrito em 1946, enquanto servia em Moscou. Em suas dezenove páginas de linhas apertadas, desconstruiu a noção então vigente de que o governo russo se encaminhava para um aggiornamento de suas relações para com o Ocidente, em direção a um posicionamento de colaboração. Pelo contrário, afirmou Kennan, Stalin implementava versão robusta da política externa centenária de desconfiança russa do mundo exterior, com a novidade de pretensões mundiais – ideológicas, econômicas e políticas – de origem bolchevique. O “Artigo X”, escrito anonimamente para a Foreign Affairs em 1947, desenvolveu o conteúdo do Longo Telegrama, dando-lhe contornos fatalistas e prescrevendo a postura norte-americana para os próximos anos, antecipando os moldes do que viria a ser a política de contenção contra a União Soviética. Ao contrário do que afirmam equivocadas interpretações, longe de defender a necessidade das ações militares que eventualmente ocorreram, Kennan previa que a URSS, se contida politicamente em determinada faixa continental, terminaria por sucumbir pelo peso de suas próprias instituições e modelo político.
George F. Kennan viveu para ver parcela significativa de suas previsões tornarem-se verdade; morreu em 2005, aos 101 anos. Com o fim da Guerra Fria, decretou o fim da própria relevância. Escreveu em seu diário: “Reconcilie-se com o inevitável; não mais lhe será permitido, na curta vida que lhe resta, fazer nada significativo”. As atuais circunstâncias, infelizmente, provam-no errado. Com tantos equívocos sendo cometidos, em nome da confusa e renovada divisão entre Rússia e o Ocidente, com tantas e lamentáveis consequências, Kennan faz-se, talvez tanto quanto antes, relevante e necessário.
KENNAN, G.F. Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 2014.

domingo, 3 de maio de 2015

Que venham os bisões.

Comigo ocorreu o costumeiro; comecei terapia por uma dor de cotovelo, mas logo ficou claro que os cinquenta minutos semanais seriam tomados de assalto por tudo o que diz respeito a minha relação com pai e mãe. O assunto me forçou as mais produtivas das minhas caras lágrimas, noventa reais por cada hora delas. Lembro-me de que deixei sessão particularmente dolorosa com a convicção de que "pai, se fode pouco o filho, é lucro", nas exatas palavras que me vieram. Não tanto tempo depois, e por coincidência, a mesma máxima me foi repetida na mais refinada forma de "pai, se não mata, aleija", no que gozei a rara glória de ser parte ativa na formação da sabedoria popular.

Mais do que outras revelações - "sua alergia a crustáceos vem do fato de você ter sido elogiado em excesso quando criança"; ou era o contrário? - surpreendeu-me constatar, a golpes de analista, que, dissipada a poeira das elucubrações racionais, guardava inegável raiva, primitiva e entranhada, por aqueles que me emprestaram vida e, desde então, fizeram o possível para melhorá-la. À época, pareceu-me justa a ideia de que a origem desse ódio residiria na descoberta de que, no final das contas, pais são feitos da mesma precária matéria deste que lhes escreve. Não somente de felicidade choram; não apenas por virtude erram; falham, e miseravelmente seguirão falhando, tão somente por sua venerável incompetência. O Rei Leão ensinou à minha geração inteira a ordinária verdade de que pais morrem. O que não nos foi ensinado, e só então me ficou claro, é que a manada de bisões os pisoteia muito antes do momento em que de fato os enterramos; nossos pais primeiro morrem quando os descobrimos pateticamente mortais.

Há muito que deixei o divã; desde então, troco com minhas dores solitárias tapas, às vezes de luva de pelica, outras de punho inglês. Sinto, contudo, que me foi deixado na cabeça um diminuto Freud, que laboriosamente remaneja o terreno infértil das minhas ideias, para, vez ou outra, aparecer com algo útil. E hoje repensei os bisões. Hoje, quando o homem que sou se faz cada vez mais real e menos mito aos meus próprios olhos; quando as frustrações não me são mais quimeras, mas apenas desagradáveis companhias; hoje, quando me descubro pateticamente mortal, e me aceito assim, de repente resta pouco daquela raiva. Vejo em meus pais indivíduos, e fascinantes, só por isso. Seus defeitos me ensinam sua história, sua história me ensina sobre mim. Sou o produto de uma de suas tantas possibilidades; tanto deles existe em mim e além de mim, e apenas comecei a aprender. Aquele ódio, mas que surpresa, era meu. Odiava-os por não ser quem eu queria ser. Que tragédia, o bisão era eu.

Agradeço, agradeço. Os anos não deixaram de vir, mas agradeço por não terem vindo tantos, antes da doce cumplicidade que hoje sinto. Somos miseravelmente falhos, mas é melhor o sermos juntos. Já fui parte deles; eles serão sempre partes de mim. Mas hoje não há ódio, que bom que não há ódio - hoje há apenas indivíduos, cometendo seus próprios erros e sucessos - atores em cenas diferentes de um mesmo espetáculo sobre a Terra. E que venham os bisões.