domingo, 16 de outubro de 2016

Redondamente zero.

O celular informou-me que, parabéns, eu correra o quilômetro cento e cinquenta neste ano. Cento e cinquenta quilômetros corridos no Centro de Convivência da cidade de Campinas, cuja volta estimo medir coisa de setecentos metros. Duzentos e quatorze voltas, em um único ano, em uma mesma praça. Afora o equilíbrio calórico precariamente mantido, era de se esperar que atividade repetida poucas centenas de vezes resultasse em alguma excelência, mas que nada - ocorrem-me as mesmas dores, o mesmo cansaço, a mesma sensação de falta de sentido em lutar contra a degradação da matéria, a mesma vontade de comprar uma cerveja e praticamente anular a meia-hora de exercício que passou. De novo, em verdade, apenas a reflexão sobre os números e as medidas que uso para explicar os fatos e processos da vida. Ou seja, absolutamente nada de útil, mas estiquemos essa inutilidade ao limite.

Em menos de um mês, completo minha vigésima-oitava volta ao redor do Sol. Nessa corrida, não tenho qualquer ambição de atingir excelência; se eu reduzir novos erros e evitar repetir os antigos, dou-me por satisfeito antes de atravessar a linha de chegada - ou de ser atravessado por ela, que as formas de morte são variadas e criativas. Admito que vinte e oito voltas não é muito, mas acontece que a vida traz mais dores, cansaço e falta de sentido do que qualquer praça de Campinas - e a mesmíssima vontade de abrir uma cerveja no fim do dia. Sigo correndo, e, se eu lhe parecer esgotado, é só fadiga. Respiro; sigo correndo.

Em cinco cidades fiz casa nesse punhado de anos. Em São Paulo, mal entendi que nascera e já parti; de Pelotas, levei um irmão. Em Recife, deixei vinte e cinco anos, incontáveis lembranças e uma saudade que me draga de volta como a maré de Boa Viagem - também a saudade tem seus tubarões -, sempre que posso e nem sempre quando preciso. Aprendi em Tübingen que o mundo se pisa. Campinas me deu meios para viver e me ensinou que não há meio de se viver só. Uma poltrona mais assanhada aqui de casa adivinha o que me passa à cabeça e me encara, como se questionasse - mas já se vai? Ah, meu bem, se é pra ser sincero, confesso que nunca cheguei. Um carrinho de compras bastou onde coubesse tudo o que eu levava quando entrei pela primeira vez por esta porta; contudo ainda não achei onde enfiar a solidão que entrou comigo naquela noite de janeiro.

Números? Números, então. Vinte e uma malescritas vezes publiquei neste cantinho confessional, o que resulta em média de escritor preguiçoso. Gostaria de dizer que o tempo é bem aproveitado em outras áreas, mas meu diletantismo é direcionado às causas mais inúteis. Mesmo com toda a preguiça e o comodismo, cultivo certo orgulho mesquinho dos quatro mil seiscentos e quarenta e três acessos de que desfrutaram, até hoje, estas páginas, ainda que ativamente ignore a porcentagem desses acessos por que sou, eu mesmo, responsável. De toda forma, sou sincera e excessivamente grato por cada visita, e todo elogio perdido recebo como se me entregassem o prêmio Camões e um milhão de dólares. Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta obrigados para cada leitor destes tristes textos.

Porque a vida não hesita em correr adiante, porque sou novo demais para estar memorialista, tenho me interessado, mais e mais, pelo número zero, por tudo que fiz vez nenhuma, por cada vazio que aguarda ser preenchido por saudosos algorismos. O risoto - ou era penne?, talvez seja penne - de salmão defumado que nunca comi. Aquela vez em que a mera visão do templo de Garni abalou meu bem fundado ceticismo, e deixei a Armênia prometendo não voltar, apenas por covardia. Nunca tive cão chamado Toboso ou filho chamado Theo. Mas, diria amigo ou amiga querida, ateu tão safado com filho desse nome? É mais uma prova de que deus foi feito pelo homem, responderia de caso já pensado - ririam conformados, coisas de Daniel, enquanto Toboso observava de um canto da sala, indiferente às pessoas e suas vaidosas ironias. 

Nada disso aconteceu e, nesta tarde abafada de nuvens indecisas, posso apenas especular sobre os números que, somados, me presentearão com motivo para escrever; ou, ainda melhor, para não o fazer. Até lá, zero, redondamente zero.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Acaso, fraqueza, razão.

Depois de certa quantidade de anos sobre a terra, toda informação inédita é recebida em referência às outras que já levamos conosco; elas nos transformam, mas também as fazemos nossas no processo. Até uns dezessete anos, contudo, nossa cabeça é matéria amorfa e flexível - cada nova ideia a define de maneira irrevogável. Foi nessa infeliz idade que li "A Náusea", de J. P. Sartre, e fui sentenciado a uma vida de pensamentos modorrentos. Pois, em determinado momento do romance, o protagonista conclui: "todo vivente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso".

O impacto dessa ideia sobre mim não se bem ilustra com grande barulho, com bums ou pâns, mas com prolongado suspiro que nem sei se já cessou; capaz de ter-me acostumado a ele, de que faça parte do som ambiente de minha cabeça em ponto-morto. Essas doze palavras me foram tatuadas na retina. Inclusive, bom dizer, transcrevo-as apenas por estar convicto de que ninguém abaixo de dezoito anos leria estas linhas - em verdade, tampouco ninguém acima, mas deixem-me com meu público fictício - de outra forma, não seria tão irresponsável.

Retorno: tomei essa ideia por regra, regra que se dividiu em preocupante variedade de subnormas e quaseverdades, todo um melancólico ordenamento jurídico responsável, tão somente, a interpretar e dar sentido a cada fato e pensamento que me ocorria. Compartilho agora alguns deles. A princípio, não me preocupavam especialmente nascer sem razão e morrer por acaso; julgava que pouco podia fazer sobre as extremidades do percurso - uma existência em fraqueza, por outro lado, tornou-se pano de fundo dos meus dias. Não apenas dos maus momentos - a tristeza desses é evidente e redundante; mas, e principalmente, também dos bons. Passei a buscar com lupa, em cada vitória e glória diminuta, a parcela de fraqueza que as maculava. Não apenas nas minhas - se ao menos limitasse essa visão ao meu mundinho, teria poupado a mim e aos próximos algumas lamentáveis decepções - mas nas das pessoas mais queridas; escrevi em meu diário, à época, que me tornava farejador de frustrações, o que é uma péssima raça de cachorro para lugares fechados e abertos.

Tentei catar fraqueza no amor, imagine o infeliz! E tive sucesso. Não conseguia me decidir sobre o que era perna e o que era muleta. O que levava comigo e o que me era levado. Paranoia e sua prima insegurança são visitas ingratas para um casal. E o amor prolongou-se por fraqueza, mas não por acaso se desfez. Ainda hoje, se me lembro desses dias confusos, sinto doída compaixão pelo garoto que fui, pelos erros que não conseguiria corrigir. Gostaria de chegar junto e dizer-lhe que é difícil, mas não tanto; que a fraqueza do amor se desfaz a quatro mãos; que são um casal, mas são inteiros, e não as metades de um quebra-cabeças de duas peças. Paciência. Repito comigo essas palavras e guardo as estrelas. Algo virá.

Com o tempo, talvez por tornar-me um tanto - um pouco? - mais seguro em minhas circunstâncias, passei a brincar com a ideia, já que não poderia esquecê-la. E se houvesse quem nascesse por acaso, se prolongasse sem razão e morresse por fraqueza? Não me soava improvável; era até bastante verossímil. Não há acaso maior do que o novelo de probabilidades que precede a existência; uma vida sem razão não é algo tão diferente do que estatisticamente já ocorre; e um momento de fraqueza antes da extinção é preferível a algumas dezenas de anos. Ou, ainda, se seguimos a sequência, nascer por fraqueza, prolongar-se por acaso e morrer sem razão? Também não soa tão absurdo. Morrer por nascer, sem razão porque ao acaso, fraquejado por prolongar-se? Tampouco. Em verdade, pergunto-me se há grandes diferenças entre essas alternativas, ou entre todas as alternativas possíveis. Arriscaria dizer que não, mas não me chamo Sartre, sou apenas Daniel e prolongo-me por fraqueza, sem razão. Como neste texto.

Recentemente, já que acaso não houve que me matasse, decidi barganhar com a noção. Desisti de desmenti-la - creio que nunca realmente tentei - mas há brechas a serem exploradas. Penso que, se nunca deixar de nascer, posso pular ao acaso diretamente do sem sentido, dispensando uma existência de fraqueza. Parece-me razoável solução. Como fazê-lo? Não saberia exatamente. Mas tento, juro que tento. Tento que meus dias se pintem de novas cores, ou ao menos de um novo tom de bege; se as rimas não forem raras, que sejam ordinárias, que nem rimem, mas que haja qualquer poesia; que o suspiro em minha cabeça, já que não cessa, ao menos alcance notas mais altas, que antecipe um gran finale, que me surpreenda enfim com grito histérico ou súbito silêncio. Juro que tento, nem sempre consigo; mas há dias em que me vem um gosto danado de vida nova.

Andava em paz com a tragédia existencialista dos franceses, com a falta de sentido da existência, com o silêncio de deus; meus problemas hoje têm rosto, têm perguntas de múltipla escolha, têm endereço. Foi doce poder olhar para mim, alguns anos atrás, e identificar quais ideias me conduziram e me trouxeram até aqui. No final das contas, poderia ter sido pior - essa constatação, se não é gloriosa, tem suas virtudes - e eu andava mais leve em face de questões tão prodigamente inúteis. Até que no almoço deste domingo ouvi a irrefutável verdade de que "o destino de toda célula é o câncer ou a senescência", e aceito sugestões de psicanalistas competentes que caibam no orçamento de um servidor público.