segunda-feira, 11 de abril de 2016

Água parada.

Há um fantasma na cidade de Campinas. Reformulo; há ao menos um fantasma na cidade de Campinas, que em assuntos de fantasmas, temos por tudo apenas aquilo que vemos, quando tanto mais há que se revela somente a olhos que não são nossos. Em verdade, se bem pensamos, tal como ocorre com a maior parte das questões de vida e seus viventes.

Arrematemos. Há um fantasma em Campinas que tomou interesse por mim; sequer desconfio do que tenha feito, em meus modos repetidos e enfadonhos de vida, para merecer tão lúgubre atenção, mas ela me veio e a recebi desarmado, que o mesmo naco de atenção é esmola pra uns e fortuna pra outros tantos, e fortuna raramente se rejeita assim tão fácil. Perguntou-me quem era, que fazia por aqui, que carrega nessa pasta, que carrega nesses ombros; pois bem, se assim me questiona, que lhe posso dizer, sou tudo que consigo ser neste momento e nestas circunstâncias, faço o mínimo necessário e o máximo que suporto das coisas todas que se fazem, nesta pasta há miudezas de hoje, sobre os ombros, todo o resto.

Pensei que bastaria; enganava-me. Restou-se por perto, seguiu-me pelas ruas; em sua graça ectoplásmica, trespassou as paredes todas que me protegem, até aquela que guardo nos recônditos mais remotos deste sujeito em que me fiz. Entrou em casa, entrou em mim. E lembrou-me daquela forma mundana de milagre, tão rara quanto conhecida, que ocorre quando cada detalhe de nossos dias faz-se mais distinto, precioso, até mais nosso, tão somente porque alguém lhe é testemunha. Pois assim me vi de repente – mais distinto, precioso, até mais meu. Que ninguém se surpreenda com o que podem os fantasmas.

E que surpresa; também eu me interessei, genuinamente interessei-me, por tudo que envolvia minha companhia fúnebre. Perguntei-lhe sobre a morte, ele deu de ombros, disse que não haviam sido apresentados; questionei-lhe sobre a vida, essa nem morrer explica; perguntei se tivera paixões daquelas que lhe pesam um grama de morte dentro do peito, quando os profetas gritam será amor, será amor, o exército da razão demonstra ser algo menos, e pouco importa, afinal, se entre amor e algo menos há infinidade de maneiras de perder-se, se o amor é inteiro perda, se algo menos é, ele mesmo, amor. Ele respondeu que sim; claro que sim.

Aqui lhes revelo semelhança fundamental na dinâmica por que se movem, em vida e fora dela, pessoas e fantasmas; uns e outros seguem seus caminhos, e mais nenhum, ainda que, por vezes, pareçamos andar juntos um só. Veio o dia, talvez há tempos viesse, mas foi surpresa, sempre é, quando, flutuando suave, disse-me que o próximo passo que desse seria em direção diversa à que seguíamos; que minha vida era toda ela plena, vida de corpo inteiro, era vida, e vida basta; disse tanto, mas disse adeus.

Que dizer, sentirei saudade. Sei que sim, sinto-a também, ainda que diferente, mesmo em morte, ausência é dor, mas saudade escorre, meu bem, juro que escorre, e desmanchou-se tranquilo na passagem entre minha vida e as dimensões outras que habita, antes que eu pudesse protestar que não, você se engana, caro amigo. Sim, é inteira minha vida, só dói porque inteira, e seguirá sendo de formas diversas, ainda que menos distinta, preciosa, menos minha. Você peca, contudo, nas metáforas, que essas inutilidades vêm melhor aos vivos. Saudade é água parada.



*Mãe, este é um texto de ficção, não estou deprimido, Campinas não tem fantasmas, é uma cidade agradável, em verdade, é a metrópole campeã de bem-estar no país. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/08/1329494-campinas-e-a-metropole-campea-de-bem-estar.shtml