Cantava baixinho London, London no ônibus quando perguntaram sobre a mancha que tenho na mão, se eu a tenho desde que nasci. Sentava ao meu lado, era mulher de seus cinquenta anos. A mancha em questão é vermelha e, quão mais velho for quem a veja, menos se parece com uma tartaruga - para minhas primas, ela chama-se Dani e esconde-se dentro do casco quando esfregamos o dedo sobre ela. E sim, senhora, tenho-a desde que apareci em vida. Perguntou-me então se tinha outras semelhantes pelo braço - São Paulo fria, manga longa. Respondi que não e me preparava para jurar até a morte que era saudável, que mesmo se fosse doença, a probabilidade seria de não ser contagiosa, mas que ela poderia mudar de lugar se preferisse; eu não me ofenderia. Visitaria a dermatologista na mesma semana, pedindo que me salvasse, mas não me ofenderia.
Restou sentada minha companhia. Disse-me que seu filho Gabriel tinha manchas iguais, e em maior número, espalhadas pelo braço. Diz a Gabriel que elas o fazem especial, contou-me, sem deixar de olhar minha tartaruga. Sua expressão não revelava se ficara feliz por encontrar outra pessoa especial, ou decepcionada por minha existência fazer com que Gabriel não mais o seja; há os dois tipos de gente, este com frequência tristemente maior do que a daquele. Disse, enfim, que ele também nasceu com um buraquinho na barriga, mas que deram ponto e se resolveu. Buraco não tenho outros que não aqueles com que normalmente se nasce; se mais houver, escapam aos olhos e são coisa minha. Cessaram as semelhanças, cessou a viagem, ela chamou o ponto e foi aonde quer que as pessoas vão depois que descem do ônibus.
Mas o pensamento em Gabriel demorou-se ainda comigo. Nada sei sobre ele além da forma como a vida decidiu marcá-lo de nascença; como ela o seguirá marcando, até que a margem oposta ao nascimento chegue, e ele abandone seu fluxo para seguir outros, ou seguir fluxo nenhum, não desconfio; contudo ele existe, tem nome e, pareceu-me, é criança ainda. Uma criança com uma mancha no braço, uma mãe que a chama especial, e, de repente, é motivo suficiente para que eu lhes tenha compaixão. Trouxe algum descanso à minha tarde o pensamento de um jantar, uma conversa no fim do dia, o comentário sobre um rapaz com uma mancha igual a sua, só que apenas uma; você tem mais e você é mais, meu filho, e estarei aqui para lhe dizer o mesmo amanhã e depois. É tudo que posso fazer por eles antes que os esqueça e siga pelo resto dos meus dias, como se eles não existissem.
A probabilidade é de que nunca conheça Gabriel. Por estas linhas lhe digo então que a vida daqueles com mancha vermelha no braço não vai fácil. Por algum motivo, há sempre quem exija mais de nós; em algum momento, ser manchado deixou de ser o bastante, e há um mundo de obrigações a serem atendidas até que se esgotem nossos anos. Haverá dias, acredite, em que parecerá não ser importante qualquer coisa que nos faça diferentes. Nesses dias, respire e lembre de sua mãe; lembre que existem aqueles para quem somos especiais tão somente por nascermos, como quer que tenhamos nascido. Não digo que seja solução, mas ajuda; pela tartaruga que carrego no braço, juro que ajuda.
Mas o pensamento em Gabriel demorou-se ainda comigo. Nada sei sobre ele além da forma como a vida decidiu marcá-lo de nascença; como ela o seguirá marcando, até que a margem oposta ao nascimento chegue, e ele abandone seu fluxo para seguir outros, ou seguir fluxo nenhum, não desconfio; contudo ele existe, tem nome e, pareceu-me, é criança ainda. Uma criança com uma mancha no braço, uma mãe que a chama especial, e, de repente, é motivo suficiente para que eu lhes tenha compaixão. Trouxe algum descanso à minha tarde o pensamento de um jantar, uma conversa no fim do dia, o comentário sobre um rapaz com uma mancha igual a sua, só que apenas uma; você tem mais e você é mais, meu filho, e estarei aqui para lhe dizer o mesmo amanhã e depois. É tudo que posso fazer por eles antes que os esqueça e siga pelo resto dos meus dias, como se eles não existissem.
A probabilidade é de que nunca conheça Gabriel. Por estas linhas lhe digo então que a vida daqueles com mancha vermelha no braço não vai fácil. Por algum motivo, há sempre quem exija mais de nós; em algum momento, ser manchado deixou de ser o bastante, e há um mundo de obrigações a serem atendidas até que se esgotem nossos anos. Haverá dias, acredite, em que parecerá não ser importante qualquer coisa que nos faça diferentes. Nesses dias, respire e lembre de sua mãe; lembre que existem aqueles para quem somos especiais tão somente por nascermos, como quer que tenhamos nascido. Não digo que seja solução, mas ajuda; pela tartaruga que carrego no braço, juro que ajuda.