segunda-feira, 4 de junho de 2018

Notícias da Estação Devir

Minha vida era linha de metrô com duas paradas – as estações Sucesso e Fracasso. Investi os recursos que tinha no bilhete para a primeira delas, e nesse lugar projetei minha única possibilidade. O emprego seria Aquele, minha renda seria Tanto; os Lugares em que eu teria Casa, o Reconhecimento dos Outros, a idade Xis. Era perfeito: no momento em que pisasse fora do trem, sob o som de fanfarras e acenando para a multidão de todos-os-rostos-que-já-vi, eu a rebatizaria Estação Daniel. Amém, rola os créditos.
Uma voz de metal anunciou a chegada. As primeiras luzes da estação tinham a cor do resto da minha vida. Mas algo mudara, e eu sabia; já há algum tempo me acompanhava o presságio, a notícia de uma Convicção que se desfez. Porta aberta na minha frente, eu não consegui dar um passo. Nunca me contaram o quanto pesa um corpo inconvicto. Pois saibam; parado estive enquanto a porta se fechava e o trem seguia. Distante, sempre e lentamente mais distante, a estação piscava em cores esquecidas, cor nenhuma, adeus.
Tem natureza religiosa a devoção que dedicamos a certos projetos. Praticam-se em dogmas e rituais, apegam-se a verdades incontestáveis. São elaborados a nossa imagem e semelhança, à imagem que construí para mim, cada um dos cento e setenta e dois centímetros da estátua de um Narciso míope. Daniel criou-se, e viu que era bom. Eita forma besta de brincar de deus.
O que sobra de mim quando esse altar é desfeito? Sentar quietinho até a Estação Fracasso, imaginei. Nunca tinha sequer pensado muito sobre ela; parecia coisa de Outros, lugar inacessível mesmo se eu quisesse visitá-lo. Pelo contrário, olha só – eu era o único passageiro do vagão. Perguntei onde tinha errado, a cabeça respondeu com sucessão de equívocos tão perfeita que era quase bonita. A cabeça é a maior artista do erro.
Percebi que o trem operava em diferentes velocidades. Se buscava Decisão que me salvasse, ele acelerava e eu podia ver os primeiros contornos da estação final; se não me movesse, ele ficaria também quase parado. Imóvel, então. Mais de um ano passei sentado sob a luz tungstênica de um vagão de metrô, criando formas do escuro lá fora, ordenhando ideias das mil tetas que eu chamava Razão.
O pensamento é bicho com a maior vontade de viver. Chega e diz eu sirvo, estou aqui para lhe servir, você o convida, me faz companhia aqui um pouquinho. E por um tempo é bom, ele até escuta, oferece conselhos e traz sentido para o tudo-aquilo que acontece do lado de fora do crânio. Mas experimenta pedir que saia, me deixe em paz agora um tanto. Ele grita, alega direitos, profere razões; chama os primos para ajudá-lo na causa. Multiplicam-se. Logo você está cercado, excedido. Não sabe se sua voz é esta ou aquela, ou todas, ou nenhuma. Você se cala. Eu e o sindicato inteiro dos pensamentos, rumo à Estação Fracasso.
Deixa eu contar um segredo sobre a Estação Fracasso – ela não chega. Ela é todos os dias que você espera pela voz anunciando eis o fracasso, bem-vindo ao fracasso, seja o fracasso, enquanto escuta os pensamentos da sua própria cabeça te ensinando maneiras mais sofisticadas de entender por que não deu certo. Quanto mais tempo você passa no trajeto, mais você acredita que merece o que quer que o destino final lhe traga. Os pensamentos certamente concordam. Sua, tão sua; por que não a chamar Estação Daniel?
Boa pergunta, grato pela pergunta. Você percebe a gravidade dos nomes?, como a linguagem cria sua própria órbita? Repeti a pergunta em voz alta – por que não a chamar Estação Daniel? Notei que alguns pensamentos mais miúdos perdiam força, sentavam-se, baixavam a cabeça. A palavra é o rivotril da ideia. Perguntei a cada um deles – por que não a chamar Estação Daniel? Desconversavam, resmungavam ironias. Por que não a chamar Estação Daniel? Apontavam um para o outro, nomeavam responsáveis. Por que não a chamar Estação Daniel? Um a um, os pensamentos se calaram, moveram-se para assentos mais distantes do vagão. Restamos eu e a pergunta – por que não a chamar Estação Daniel?
Por motivo nenhum. Eu bem podia chamá-la assim. Mas também poderia chamá-la Estação Porra-Nenhuma ou Estação Carnaval de Olinda. Não pare, você está indo bem. Por que o trem, a linha reta, por que duas estações? A vida em seus contornos serpenteia, cria formas improváveis sobre o próprio eixo. Continue. Sucesso ou fracasso, fim? Eu tinha uma aquarela para trabalhar, peguei o bege, fiz um risco; chamei projeto de vida. Achei que se deixasse o trem eu cairia, quando o escuro lá fora era apenas as possibilidades que eu não podia enxergar. Bota o pé para fora. Não há trem. Bem-vindo.
Não espero o luxo das epifanias. Todo dia esqueço um pouco, reaprendo as mesmas constatações. Por vezes vacilo e quase vejo o trem parado, portas abertas, os pensamentos na janela esperando descuido meu. Quando isso acontece, boto os olhos na mesa e rascunho ambições mais próximas. Aprendo formas curvas e seus caminhos mais distantes; esboço projetos, mas não dou meu nome a eles. Tenho falado mais, pergunto aos pensamentos coisas que até já sei. Alguns começaram a me responder. Devo ser companhia melhor.
Não projetei as próximas paradas, nem sei se é mesmo possível parar. Mas tenho desenhado um canto bonito para passar o tempo. Ele tem cores suaves e duas poltronas, os pensamentos me visitam um de cada vez. Há um caderno em que experimento com verbos; as palavras têm me vindo mais leves, quase sem maiúsculas. Sinto que nele a vida espera, eu vinha mesmo precisando de uma passada mais tranquila. Ele podia ter tantos nomes, ou nome nenhum, mas achei por bem chamá-lo Estação Devir, e é de onde eu hoje mando notícias. Como vão?

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Estou aqui (ou o pudim da indiferença)

Sentado sobre uma pedra escura do vale que se espreguiça desde o Templo de Garni até o começo do mundo, que fica também na Armênia, mendiguei às sinapses um momento de atenção. Naquela paisagem, somente eu era mais jovem do que os séculos — na maior parte dos dias, ao menos; verdade é que experimento certos enfados centenários. Reuni daquele cenário tudo o que cabia em meus olhos enquanto repetia, sem medo de que o rio entendesse meu português: “estou aqui, eu estou aqui”.
Era necessário. Momento para reminiscências. Quando criança, descobri e aperfeiçoei habilidade que então me parecia útil — se me encontrava em situação pastosa como salas de espera, fila de banco ou culto religioso, abrigava-me em canto mal-iluminado da cabeça, e lá ficava pela duração do inconveniente, enquanto meu corpo era conduzido pelos movimentos conformados a que se limitam máquinas em piloto automático. Dava certo; o tempo se comprimia, o incômodo se abafava. Do outro lado do túnel, eu saía quase intocado. Quase.
Não subestimem os perigos do autodidatismo. Logo restou evidente que aprendi lições muito além daquela a que me propus. Pois quando o incômodo não durou a tarde, mas um ano, quando não era uma sala, mas a casa inteira, o que fiz? Pendurei os quadros nas paredes do mesmo canto que já conhecia, tranquei a porta e lá me escondi. Proteção tornou-se apatia; eu flutuava em um pudim de indiferença. Para que não doesse — eita, medo seboso de doer — pintei a vida de um só tom. Se o diabo mora nos detalhes, ele divide apartamento com as alegrias mais bonitas. Apaguei tudo. Apatia rima como anedonia, que rima com você já não vai bem, meu caro amigo.
Prestar atenção como sobrevivência. Assistam a Paterson, do Jim Jarmusch, é dica para algum dia, quem sabe hoje. Ele diz mais do que eu jamais conseguiria sobre atenção aos detalhes, mas devo tentar. Quando se navega o pudim da indiferença, tão eficiente é a dormência, que somente catarse faz alguma cócega. Não dependa de catarses, não faça isso; são crianças que descem do brinquedo e gritam “próximo”! E aí fica fácil encadear festas com um sol que nasce cada vez mais rápido, um diazinho a mais durante a semana em que beber é aceitável, o sexo que, de tão boçal, poderia ser vendido nas lojas Americanas. Quando mal percebe, filho da mãe, até a catarse você conseguiu entediar.
Há uma rota de fuga nos detalhes. Se por nada mais, pela razão de que são inescapáveis. Com isso, não proponho grandes esquemas ou esoterismo, é tudo de duro-toque. Nada além de você precisa mudar para que eles se notem. Faz poucos meses, resolvi tentar; verdade é que andava exausto, sujeito apequenado, abrigado em meus próprios recônditos. Destranquei as portas, dei uma espiada, lá estavam. O cocker-spaniel que corria na praça mancava de uma das patas, trouxe-me saudades de Tina e lembrou-me da vontade de ter meus cachorros, quem sabe três. A colega de sala, com quem troco apenas bons-dias, perguntou-me se eu melhorara do estômago — refleti se esse é o cuidado que me resta, e pensei também que bom, cuidados hoje me vêm sem que eu mesmo espere. O sorriso da garota, visto assim de perto, parece dizer que já se vai, mas que sorte ter vindo. No espelho, um mistério, quinhentos e cinquenta mistérios; resolvida só a morte, eu sigo. No ponto exato entre a melancolia e a exaltação, o ordinário torna-se qualquer coisa de sagrado. Há dor, felicidade e, na maioria das vezes, ambas as coisas. Dedicaria uma vida inteira a ser testemunha desses milagres quânticos.
Prestar atenção como liberdade. Na infância da internet de banda larga, David Foster Wallace viralizou com This is Water, seu discurso à Universidade de Kenyon (se me permitem mais uma sugestão…). A tese: o esforço apolíneo de se prestar atenção aos detalhes mais miúdos, às circunstâncias mais intrincadas, é recompensado pela possibilidade de se escolher a quais, entre eles, atribuiremos relevância; em consequência, viveríamos com mais significado e compaixão. Concordo. Naturalmente, é atitude cansativa, custosa, e quem precisa dessa bronca depois de trabalhar um expediente e pegar dois metrôs? Mas não esqueça que ignorar esses detalhes é também uma escolha. O piloto-automático é escolha, e ela vem com pacote gordo e indistinto de tudoissoaomeuredor. Importar-se sobre tudo é bem parecido com não se importar sobre nada. Para lidar com esse mamute, apenas fúria ou indiferença, e já gastei tempo suficiente me hospedando em ambas.
Prefiro a possibilidade de depurar os detalhes, hierarquizá-los, separar o proverbial joio do trigo. O custo é desencorajador. Primeiramente, pela constatação de que existem aos milhões, e boa parte deles me confrontam com a desagradável verdade de que não sou o centro do universo e de que o Estado Nação não se organiza ao meu redor. Em segundo lugar, porque percebo o tempo e a energia desperdiçados com o novelo de insignificância acumulado durante minha existência até aqui. Paciência. Superado o desconforto, que liberdade. Em minha frente, a realeza, o crème de la crème dos meus valores, para que me tragam alegrias e frustrações. Podem vir, assim eu aguento.
Falando desse jeito, parece até que trilhei o Caminho de Damasco, experimentei revelações e saio por aí despejando pedaços de sabedoria adquirida sobre os demais. Rigorosamente o contrário. Perigosamente, o contrário. Toda manhã é gincana de evitar armadilhas de ansiedade, sigo em um emprego que não me motiva, dispendo variados recursos para administrar algum otimismo sobre o futuro. E mais, e mais. Hoje me limito a tentativas de perceber, de constatar; prestar atenção como ritual. Mas que privilégio é começar o dia e declarar que estou aqui, estou presente. E a vida se exibe em improváveis arranjos, bem-vinda.

domingo, 18 de março de 2018

Gostar de mim

Tenho um amigo, desses que no meu coração há uma avenida em seu nome, que convive desde a infância com forma aguda de ansiedade. Ela permeia e incomoda aspectos diversos de seus dias. É divertido ouvi-lo falar dos mecanismos de controle a que recorre, com a ironia e o estoicismo que já lhe são segunda natureza. Contou-me que medita todos os dias assim que acorda; também diariamente ingere um grama e tanto de remédio com nome estrangeiro e hostil; pratica natação; evita carboidratos; aos sábados e domingos, preenche cadernos sobre o próprio estado mental. Tudo isso me soou cansativo e excêntrico. Lembrei-lhe de que estou à disposição, mudamos de assunto.

Outra amiga - querida, tão querida - recentemente vivenciou profundo luto. Decidiu então que era tempo de promover relançamento de seus modos de vida, dos meandros pelos quais sentia o mundo, e era por ele sentida. Buscou vivências; entrou em contato com o sagrado feminino; ofereceu a aura para que fosse lida; entendeu o céu; aprendeu ajudar a nascer. Nadando de braçada na piscina turva do ceticismo, tive por bem apoiá-la em seus caminhos, mas não me esforcei para esconder certo espanto, nem que fosse por uma questão de princípios.

Ano passado minha alma teve cãibras. A vida ficou toda ela um tanto contraída, a ousadia de se mexer doía. Fiquei parado, estive parado. A cabeça deu-se a praticar tipo mesquinho de dialética - para cada ideia que brotava sobre próximos passos, era produzida anti-ideia, tão sofisticada quanto. Tornei-me exausto por operações de soma-zero. Custei a concluir o que hoje me parece óbvio - sozinho já não dava conta das demandas com que eu me presenteava.

Busquei uma terapeuta. Duas vezes por semana, deito no divã e submeto-me a golpes de psicoanálise. O salário apequenou-se. Há dias em que saio da sessão pronto para entregar meu cérebro a um grupo de estudos sobre causas perdidas, pelo progresso da ciência. Há outros, contudo, em que deixo a sala com preciosas constatações, algumas até gentis. Por vezes, sem que eu mal perceba, minha voz torna a fazer sentido, e uma ideia é só uma ideia, mas inteira e com ares de produtiva. Bem-vinda. Aos poucos, em processo lento e irregular - fique calmo, como não seria? - recupero alguma forma de protagonismo sobre a vida e as possibilidades que se me apresentam. A alma não reclama de alongar-se.

Acima de tudo, descobri forma bonita de gostar de mim. Não compreendo a psicoanálise e seus funcionamentos, nada tenho a apresentar por resultados concretos. Mas a decisão de frequentá-la foi prova de que mereço cuidado. Um gesto humilde - para cuidar de mim, foi necessário renunciar à vaidade de bastar-se. Não me basto, mas me tenho carinho. Zelo por mim como zelava pelos outros aspectos de minha vida. Cuidar de mim como forma de amor-próprio.

É sem qualquer cinismo que hoje sinto a mais profunda admiração pelos amigos de que falei. Não somente - por cada pessoa que decidiu ser merecedora do próprio carinho. Meditação, diários, terapia, misticismo; para além de resultados, para além do método, há mérito em buscar maneira qualquer de se colocar em evidência. E parabéns; verdade é que a vida apresenta motivos suficientes para que não raro esqueçamos disso.

Respiro. O caminho é longo, espero que longo, não pretendo que ele tão cedo acabe. Por ora, conto as moedas no banco e aprendo a curtir a novidade singela que é gostar de mim.