Minha vida era linha de metrô com duas paradas – as estações Sucesso e Fracasso. Investi os recursos que tinha no bilhete para a primeira delas, e nesse lugar projetei minha única possibilidade. O emprego seria Aquele, minha renda seria Tanto; os Lugares em que eu teria Casa, o Reconhecimento dos Outros, a idade Xis. Era perfeito: no momento em que pisasse fora do trem, sob o som de fanfarras e acenando para a multidão de todos-os-rostos-que-já-vi, eu a rebatizaria Estação Daniel. Amém, rola os créditos.
Uma voz de metal anunciou a chegada. As primeiras luzes da estação tinham a cor do resto da minha vida. Mas algo mudara, e eu sabia; já há algum tempo me acompanhava o presságio, a notícia de uma Convicção que se desfez. Porta aberta na minha frente, eu não consegui dar um passo. Nunca me contaram o quanto pesa um corpo inconvicto. Pois saibam; parado estive enquanto a porta se fechava e o trem seguia. Distante, sempre e lentamente mais distante, a estação piscava em cores esquecidas, cor nenhuma, adeus.
Tem natureza religiosa a devoção que dedicamos a certos projetos. Praticam-se em dogmas e rituais, apegam-se a verdades incontestáveis. São elaborados a nossa imagem e semelhança, à imagem que construí para mim, cada um dos cento e setenta e dois centímetros da estátua de um Narciso míope. Daniel criou-se, e viu que era bom. Eita forma besta de brincar de deus.
O que sobra de mim quando esse altar é desfeito? Sentar quietinho até a Estação Fracasso, imaginei. Nunca tinha sequer pensado muito sobre ela; parecia coisa de Outros, lugar inacessível mesmo se eu quisesse visitá-lo. Pelo contrário, olha só – eu era o único passageiro do vagão. Perguntei onde tinha errado, a cabeça respondeu com sucessão de equívocos tão perfeita que era quase bonita. A cabeça é a maior artista do erro.
Percebi que o trem operava em diferentes velocidades. Se buscava Decisão que me salvasse, ele acelerava e eu podia ver os primeiros contornos da estação final; se não me movesse, ele ficaria também quase parado. Imóvel, então. Mais de um ano passei sentado sob a luz tungstênica de um vagão de metrô, criando formas do escuro lá fora, ordenhando ideias das mil tetas que eu chamava Razão.
O pensamento é bicho com a maior vontade de viver. Chega e diz eu sirvo, estou aqui para lhe servir, você o convida, me faz companhia aqui um pouquinho. E por um tempo é bom, ele até escuta, oferece conselhos e traz sentido para o tudo-aquilo que acontece do lado de fora do crânio. Mas experimenta pedir que saia, me deixe em paz agora um tanto. Ele grita, alega direitos, profere razões; chama os primos para ajudá-lo na causa. Multiplicam-se. Logo você está cercado, excedido. Não sabe se sua voz é esta ou aquela, ou todas, ou nenhuma. Você se cala. Eu e o sindicato inteiro dos pensamentos, rumo à Estação Fracasso.
Deixa eu contar um segredo sobre a Estação Fracasso – ela não chega. Ela é todos os dias que você espera pela voz anunciando eis o fracasso, bem-vindo ao fracasso, seja o fracasso, enquanto escuta os pensamentos da sua própria cabeça te ensinando maneiras mais sofisticadas de entender por que não deu certo. Quanto mais tempo você passa no trajeto, mais você acredita que merece o que quer que o destino final lhe traga. Os pensamentos certamente concordam. Sua, tão sua; por que não a chamar Estação Daniel?
Boa pergunta, grato pela pergunta. Você percebe a gravidade dos nomes?, como a linguagem cria sua própria órbita? Repeti a pergunta em voz alta – por que não a chamar Estação Daniel? Notei que alguns pensamentos mais miúdos perdiam força, sentavam-se, baixavam a cabeça. A palavra é o rivotril da ideia. Perguntei a cada um deles – por que não a chamar Estação Daniel? Desconversavam, resmungavam ironias. Por que não a chamar Estação Daniel? Apontavam um para o outro, nomeavam responsáveis. Por que não a chamar Estação Daniel? Um a um, os pensamentos se calaram, moveram-se para assentos mais distantes do vagão. Restamos eu e a pergunta – por que não a chamar Estação Daniel?
Por motivo nenhum. Eu bem podia chamá-la assim. Mas também poderia chamá-la Estação Porra-Nenhuma ou Estação Carnaval de Olinda. Não pare, você está indo bem. Por que o trem, a linha reta, por que duas estações? A vida em seus contornos serpenteia, cria formas improváveis sobre o próprio eixo. Continue. Sucesso ou fracasso, fim? Eu tinha uma aquarela para trabalhar, peguei o bege, fiz um risco; chamei projeto de vida. Achei que se deixasse o trem eu cairia, quando o escuro lá fora era apenas as possibilidades que eu não podia enxergar. Bota o pé para fora. Não há trem. Bem-vindo.
Não espero o luxo das epifanias. Todo dia esqueço um pouco, reaprendo as mesmas constatações. Por vezes vacilo e quase vejo o trem parado, portas abertas, os pensamentos na janela esperando descuido meu. Quando isso acontece, boto os olhos na mesa e rascunho ambições mais próximas. Aprendo formas curvas e seus caminhos mais distantes; esboço projetos, mas não dou meu nome a eles. Tenho falado mais, pergunto aos pensamentos coisas que até já sei. Alguns começaram a me responder. Devo ser companhia melhor.
Não projetei as próximas paradas, nem sei se é mesmo possível parar. Mas tenho desenhado um canto bonito para passar o tempo. Ele tem cores suaves e duas poltronas, os pensamentos me visitam um de cada vez. Há um caderno em que experimento com verbos; as palavras têm me vindo mais leves, quase sem maiúsculas. Sinto que nele a vida espera, eu vinha mesmo precisando de uma passada mais tranquila. Ele podia ter tantos nomes, ou nome nenhum, mas achei por bem chamá-lo Estação Devir, e é de onde eu hoje mando notícias. Como vão?