quinta-feira, 5 de abril de 2018

Estou aqui (ou o pudim da indiferença)

Sentado sobre uma pedra escura do vale que se espreguiça desde o Templo de Garni até o começo do mundo, que fica também na Armênia, mendiguei às sinapses um momento de atenção. Naquela paisagem, somente eu era mais jovem do que os séculos — na maior parte dos dias, ao menos; verdade é que experimento certos enfados centenários. Reuni daquele cenário tudo o que cabia em meus olhos enquanto repetia, sem medo de que o rio entendesse meu português: “estou aqui, eu estou aqui”.
Era necessário. Momento para reminiscências. Quando criança, descobri e aperfeiçoei habilidade que então me parecia útil — se me encontrava em situação pastosa como salas de espera, fila de banco ou culto religioso, abrigava-me em canto mal-iluminado da cabeça, e lá ficava pela duração do inconveniente, enquanto meu corpo era conduzido pelos movimentos conformados a que se limitam máquinas em piloto automático. Dava certo; o tempo se comprimia, o incômodo se abafava. Do outro lado do túnel, eu saía quase intocado. Quase.
Não subestimem os perigos do autodidatismo. Logo restou evidente que aprendi lições muito além daquela a que me propus. Pois quando o incômodo não durou a tarde, mas um ano, quando não era uma sala, mas a casa inteira, o que fiz? Pendurei os quadros nas paredes do mesmo canto que já conhecia, tranquei a porta e lá me escondi. Proteção tornou-se apatia; eu flutuava em um pudim de indiferença. Para que não doesse — eita, medo seboso de doer — pintei a vida de um só tom. Se o diabo mora nos detalhes, ele divide apartamento com as alegrias mais bonitas. Apaguei tudo. Apatia rima como anedonia, que rima com você já não vai bem, meu caro amigo.
Prestar atenção como sobrevivência. Assistam a Paterson, do Jim Jarmusch, é dica para algum dia, quem sabe hoje. Ele diz mais do que eu jamais conseguiria sobre atenção aos detalhes, mas devo tentar. Quando se navega o pudim da indiferença, tão eficiente é a dormência, que somente catarse faz alguma cócega. Não dependa de catarses, não faça isso; são crianças que descem do brinquedo e gritam “próximo”! E aí fica fácil encadear festas com um sol que nasce cada vez mais rápido, um diazinho a mais durante a semana em que beber é aceitável, o sexo que, de tão boçal, poderia ser vendido nas lojas Americanas. Quando mal percebe, filho da mãe, até a catarse você conseguiu entediar.
Há uma rota de fuga nos detalhes. Se por nada mais, pela razão de que são inescapáveis. Com isso, não proponho grandes esquemas ou esoterismo, é tudo de duro-toque. Nada além de você precisa mudar para que eles se notem. Faz poucos meses, resolvi tentar; verdade é que andava exausto, sujeito apequenado, abrigado em meus próprios recônditos. Destranquei as portas, dei uma espiada, lá estavam. O cocker-spaniel que corria na praça mancava de uma das patas, trouxe-me saudades de Tina e lembrou-me da vontade de ter meus cachorros, quem sabe três. A colega de sala, com quem troco apenas bons-dias, perguntou-me se eu melhorara do estômago — refleti se esse é o cuidado que me resta, e pensei também que bom, cuidados hoje me vêm sem que eu mesmo espere. O sorriso da garota, visto assim de perto, parece dizer que já se vai, mas que sorte ter vindo. No espelho, um mistério, quinhentos e cinquenta mistérios; resolvida só a morte, eu sigo. No ponto exato entre a melancolia e a exaltação, o ordinário torna-se qualquer coisa de sagrado. Há dor, felicidade e, na maioria das vezes, ambas as coisas. Dedicaria uma vida inteira a ser testemunha desses milagres quânticos.
Prestar atenção como liberdade. Na infância da internet de banda larga, David Foster Wallace viralizou com This is Water, seu discurso à Universidade de Kenyon (se me permitem mais uma sugestão…). A tese: o esforço apolíneo de se prestar atenção aos detalhes mais miúdos, às circunstâncias mais intrincadas, é recompensado pela possibilidade de se escolher a quais, entre eles, atribuiremos relevância; em consequência, viveríamos com mais significado e compaixão. Concordo. Naturalmente, é atitude cansativa, custosa, e quem precisa dessa bronca depois de trabalhar um expediente e pegar dois metrôs? Mas não esqueça que ignorar esses detalhes é também uma escolha. O piloto-automático é escolha, e ela vem com pacote gordo e indistinto de tudoissoaomeuredor. Importar-se sobre tudo é bem parecido com não se importar sobre nada. Para lidar com esse mamute, apenas fúria ou indiferença, e já gastei tempo suficiente me hospedando em ambas.
Prefiro a possibilidade de depurar os detalhes, hierarquizá-los, separar o proverbial joio do trigo. O custo é desencorajador. Primeiramente, pela constatação de que existem aos milhões, e boa parte deles me confrontam com a desagradável verdade de que não sou o centro do universo e de que o Estado Nação não se organiza ao meu redor. Em segundo lugar, porque percebo o tempo e a energia desperdiçados com o novelo de insignificância acumulado durante minha existência até aqui. Paciência. Superado o desconforto, que liberdade. Em minha frente, a realeza, o crème de la crème dos meus valores, para que me tragam alegrias e frustrações. Podem vir, assim eu aguento.
Falando desse jeito, parece até que trilhei o Caminho de Damasco, experimentei revelações e saio por aí despejando pedaços de sabedoria adquirida sobre os demais. Rigorosamente o contrário. Perigosamente, o contrário. Toda manhã é gincana de evitar armadilhas de ansiedade, sigo em um emprego que não me motiva, dispendo variados recursos para administrar algum otimismo sobre o futuro. E mais, e mais. Hoje me limito a tentativas de perceber, de constatar; prestar atenção como ritual. Mas que privilégio é começar o dia e declarar que estou aqui, estou presente. E a vida se exibe em improváveis arranjos, bem-vinda.