segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Breves interações com anônimos notáveis

[1]

Correr na ciclovia da Paulista é experiência existencial, pois tudo que não sou eu me despreza ou me ultrapassa. As bicicletas passam por mim e quase ouço o muxoxo de impaciência; não levo para o lado pessoal, nem disputo que elas são as donas do pedaço. Também me irritaria com o obstáculo suado tentando não ser problema-pra-ninguém enquanto deslizo do ponto A ao B. Sou tratado de formas diferentes pelos carros a depender do estado do trânsito. Na melhor das hipóteses, são indiferentes, passando por uma condescendência fofa de olha-ele-ali-tentando; no pior dos casos, um olhar hostil de 'tá achando que é melhor do que eu?'

Portanto entendam que me alegrei e me entreguei a fantasias quando vi o rapaz que também corria um pouco na minha frente. De repente já não se tratava de repetição burocrática de passadas com o objetivo último de seguir cabendo nas mesmas calças, mas de epopeia olímpica, um desafio de velocidade com São Paulo por plateia. Eu sou atleta e tenho rival que me define e dá sentido a tudo que passei até esta tarde excessivamente seca de inverno; eu o respeito e o detesto em igual medida, entre nós existe tão somente o limite físico da espécie humana.

Olhando de fora, o que você veria era alguém que já teve uma forma melhor acelerando bastante acima de um nível sustentável, com o objetivo de ultrapassar sujeito que claramente ainda não tinha ouvido notícia de sua existência. Em minha defesa, ultrapassei a linha de chegada unilateralmente estipulada em primeiro lugar. E a surpresa: quando me recuperava arfando das cãibras e da subventilação, meu nêmesis cruzou comigo e soltou: 'valeu, bróder'.

Quem diria, conexões humanas das mais repentinas se constroem por árduas provações, incluindo as fictícias.

[2]

Esses dias quase tropecei em uma labradora gorda e amarela deitada sozinha na calçada, indiferente aos transeuntes. Ameacei achar estranho, mas dei de ombros; é o que São Paulo orienta fazer na presença de extravagâncias.

Alguns metros a frente, uma senhora segurava pela coleira outro labrador, tão gordo e amarelo quanto o primeiro, visivelmente contrariada. Arrisquei a conclusão de que os três se conheciam.
"Savana tá fazendo isso depois de velha. Ela acha que brincou pouco tempo no parquinho, deita e se recusa a voltar pra casa."

Bom, no que me toca, segui voltando contente para a minha, que casa e parquinho se tornam coisas bem parecidas depois de um tempo. Mas bom pra você, Savana. Abro a janela e imagino um dia em que mais senhores e senhoras batam o pé e decidam que não brincaram o bastante; possível que faltassem calçadas no mundo.

[3]

Entrei no metrô e sentei ao lado de duas mulheres que conversavam. Melhor: uma delas falava enquanto a outra exibia o tipo digno de tristeza que só se vê em lugares públicos.

"Eu sei o que você tá sentindo; quando Luís foi embora foi a mesma coisa, mesminha; a pessoa acha que vai morrer ou já morreu, mas diga a deus que passa, pois passa, num passou comigo? passou; e Luís foi embora e Rogério num foi preso?; e pra visitar era aquilo, policial passando a mão e tirando sua roupa, e eu aguentando, num aguentava?; tinha que aguentar, num tinha que ver Rogério?, tinha, num era a mãe? E passou, minha filha; passa. A gente desce nessa ou na outra?"

Me voluntariei a ajudar da melhor forma que meu conhecimento do subterrâneo permitia, e foi suficiente. Ela digeriu a informação por um momento e mandou:

"Mas não é bonitinho ele? Parece um desenho animado!" E saíram as duas rindo.

Em três paradas eu deixaria aquele trem; por alguns metros, minha vida e outras centenas caminhariam juntas em procissão. É fácil lembrar que São Paulo tem muita gente. Mas ainda surpreende o tanto de gente que é uma pessoa só: anda de metrô, conversa, consola, é abandonada por Luís, acha que morreu, visita Rogério na prisão, é abusada e é abusada de novo, é mãe e diz que passa, esquece estações, faz elogios. E assiste a desenhos animados.