Já há bons minutos, eu e o
apartamento nos encaramos. Recém-chegado, recorro à cortesia, deixo que fale
primeiro, um alô, bem-vindo, faz-me casa, faz-me seu. Percebo, em seu silêncio,
o desconcerto de expectativas frustradas, e entendo-o. Imagino que ideias não
teve, durante seus meses de porta fechada, sobre o tipo de gente que o ocuparia,
assim que decidissem residir na cidade de Campinas. Tem jeitos festivos, este
imóvel. Sua janela é ampla e dá para outras tantas janelas e varandas, que
anunciam orgulhosas, em luzes dispersas, a gente toda que as preenche. Estou
certo de que ansiava pelo momento em que, numa madrugada de terça-feira,
gritaria a seus pares, a pleno brilho, que Sim, meus caros, aqui há vida, aqui
há vida. Se pudesse escolher, acolheria casal jovem e sem filhos, já que nele
há único quarto, com amigos que insistissem por uma última música, uma última
taça, em mais uma noite.
Por isso, insisto que das paredes
ouvi suspiro no momento em que entrei sozinho, carregando três malas e um
carrinho de livros, e encarei resignado os cômodos em que viveria. Eu entendo a
decepção, digníssimo imóvel. Não tem família, esse infeliz, que o ajude na
mudança e estoure o espumante, brindando às alegrias e dificuldades do primeiro
lar? É assim tão miserável que não tem pelo menos uns três amigos que receba em
open-house, que derrubem o vinho e saiam sem oferecer, ao menos, a gentileza de
um esfregão? E que expressão apática é essa no rosto, onde deveria haver a
alegria arrebatada de um jovem independente?
Bem, que posso dizer? Família
tenho, próspera e querida; vivem suas escolhas, buscam a felicidade em cantos
espalhados, e amo-os por essa razão e por outras. Bebida não falta que brindem
por mim, e eu por eles. Amigos, você não acreditaria em como os tenho.
Indivíduos que me dão o privilégio de carregar um tanto de mim em suas vidas.
Sem eles, já nem bem seria. Estão por aí, pisam o mundo, alguns acompanho
atento, de outros há tempos não ouço. Mas não, aqui não os tenho. E você cobra
de mim alegria? Pois bem, saiba que também a cobro, não duvide. Não me tenha
por tipo lacrimoso, dado a melancolias gratuitas. Sou grato; tenho dinheiro que
me compra os dias, tenho objetivos que me sustentam o ano e, oras, tenho você,
um apartamento simpático onde moro com recursos meus. Mas não se espante com
certo enfado, você há de notar que ando sozinho; trouxe comigo, mais do que
malas e livros, saudades e receios. Receio de não conseguir, saudade de quem
não tenho perto.
Nesse instante, os armários embutidos da sala rangem: “e quem não?”. Bem verdade, mas vá pastar.
Se estamos sendo sinceros, saiba que tampouco você me satisfaz plenamente. Tive sonhos, imagine, sobre o lugar onde primeiro fincaria pés, bateria estaca e chamaria casa. As pessoas todas cuja falta você notou, saiba que eu a noto mais. Culpo-o, em partes; culpo-o por estar em cidade que não escolhi, ocupado por objetos que não comprei, vazio de companhias que não tenho. Concordo com você; tão melhor seria tê-lo cheio, vigoroso no ruído das conversas exaltadas. Faltou cadeira! Sento no chão, a casa é de vocês. Tem vinho? Tanto quanto há sede, beba contente, minha amiga. Em conversas distantes, onde estivesse ausente, vez por outra seria dito “É sexta-feira, vamos lá em Daniel”. Mas mal o conheço, seria estranho? De forma alguma; venham, venham todos, venham sempre, que solidão é bicho pra se matar como a César, a quarenta mãos. Que injusto que é culpar vivente por ser quem quer que ele seja. Reconheço que sim, mas você me pegou emotivo.
Caro apartamento, certo é que
necessitamos trégua. Eu o quero casa, você me quer vida. De minha parte,
proponho meus termos. Sim, a maior parte dos meus dias será cozida em
melancólico banho-maria; não há emoção aparente em livros e questões. Haverá
momentos, sei que haverá, em que sucumbirei sob a pasmaceira do desânimo;
quando for o caso, peço compreensão, favor não queimar a resistência do
chuveiro. A louça, lavo depois. Por outro lado, ofereço minhas garantias. Não
há de faltar, dia que seja, boa música que receba a manhã e se despeça da
noite. A cozinha será minha aventura; a cada mês, prometo nova habilidade que
lhe perfumará o teto. Na maior parte das semanas, seremos eu, você e nossos
diálogos. Mas, quando houver companhia, eu lhe juro, será recebida de garrafa
aberta, e, se houver quem toque, acordaremos os vizinhos com o violão
desafinado. Aqui há vida, aqui há vida.
De você, só lhe peço paciência –
essa também peço de mim. Aos poucos, desatentos, faremos de nós saudade a
decorar outras paredes que me recebam.