sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Tormentos eternos me ofendem.

Experimento determinado incômodo de forma recorrente quando discuto os limites da liberdade de expressão para sátiras (e ofensas, mesmo) a crenças religiosas. Os meus queridos e crentes interlocutores vão a grandes distâncias retóricas para justificar que alguém não possa, a título de exemplo, chamar o deus cristão um grandessíssimo cretino, mas sequer questionam a liberdade de professar um credo segundo o qual euzinho, se não mudar minhas convicções em vida, ao fim dela, passarei a eternidade - eternidade! - em lugar, no mínimo, desagradável - e que é descrito, com frequência alarmante, como algo envolvendo muito fogo. Ou, nas palavras divinamente inspiradas de Matheus, sobre eu e meu grupelho de ímpios: "irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.” (26:46).
Tormento (ou punição, de acordo com outras traduções) dificilmente é uma palavra que alguma interpretação faça soar bem - seguida de "eterno", então, é algo com o que sequer a Coreia do Norte consegue ameaçar seus prisioneiros (toda a população do país, diga-se); esses coitados têm a morte, ao menos, para livrá-los do sofrimento que lhes foi imposto (e se alguém vier me falar de 'escolha', eu desenho um Maomé sodomita, assino com o nome do sujeito e publico na internet). Temos aí exemplo acabado do sistema penal mais cruel e inflexível de que se teve notícia na história: um único julgamento; sem apelação (a não ser que você seja o Zé Grilo); e condenação eterna.
Será que não ocorre aos mais crédulos o quão ofensivo isso pode soar a mim ou aos demais que negam jesus, deus, a trindade inteira, os evangelhos e a transubstanciação (ou vampirismo) em suas vidas? Que a maior parte da população acredita realmente que, apenas por fazê-lo,mesmo sendo pessoas absolutamente boas, depois de morrermos, passaremos uma eternidade em punição (mais ainda: como vocês ficam bem com isso?)?
Cá comigo, "acho isso tudo uma grande piada e um tanto quanto perigoso" e nunca vou questionar a liberdade de alguém proclamar folclore qualquer em que acredite, mesmo que ele carregue consigo uma sentença de pós-morte em meu nome. Mas fica a sugestão de ideia aos crédulos que têm considerado a hipótese de limites a ofensas contra religiões quaisquer: o quão ofensiva pode ser, em essência, essa mesma crença.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo

Em oposição, tudo o que amo e o que eu mais desprezo. De um lado, liberdade de expressão, inteligência, crítica, ironia, secularismo, iconoclastia, arte; de outro, fundamentalismo religioso, intolerância, totalitarismo, violência, estupidez, misticismo.
Que se desenhem Jesus travesti, Maomé sodomita, Yahweh poliamante - ou o que quer que os respectivos crentes, do fundo de sua incompreensão, tenham por ofensivo. Indignação e revolta são legítimas; que cada um exerça suas sensibilidades da forma que preferir. Mas ofensa pessoal nenhuma, fundamentada em sátira a credo religioso, deve provocar por reação a mínima restrição do direito à liberdade de expressão e de imprensa. Boicotes, protestos, manifestações, até (suspiro) ações judiciais; vale tudo.
Mas nunca - nunca - uma reação violenta é justificada. Nunca é o caso de que o autor da sátira deveria ter sido "mais prudente". Nunca o veículo de imprensa deve se abster de publicar material qualquer, por medo da reação de fanáticos. Nunca a liberdade de expressão, uma das mais admiráveis e preciosas obras construídas, a grande custo, pela humanidade, deve ser tolhida, em nome das sensibilidades de uma ideologia que se crê única, total, absoluta.
Cabe às nações do mundo condenarem, em uma só voz, os ataques desta quarta-feira; devem elas, civilizações ocidentais, islâmicas, ortodoxas, africanas, asiáticas, analisarem de forma multilateral a natureza e os desdobramentos da questão, para, simultaneamente, retaliarem severamente os agentes mais superficiais dessa espécie de violência e elaborarem ações estruturais para solucionar suas causas mais profundas.
Cabe a nós, as pessoas pequenas, nunca nos submetermos à restrição do pensamento de qualquer natureza; sermos prudentes, mas não cedermos ao medo do radical; sermos radicais na defesa da expressão do pensamento, qualquer que ele seja, cientes da responsabilidade por tudo que é expresso; nunca sermos condescendentes em face de violências desse tipo, nunca justificarmos, nunca levantarmos poréns.

A defesa do pensamento, ela sim, é universal, absoluta, total.
Abaixo, direto do forno, a charge de um maomé sereno e simpático.