No contexto
das manifestações de julho do ano passado, Dilma Roussef expressou-se em rede
nacional e, em resposta às reivindicações que ela achou por bem divisar nos
protestos, anunciou que trabalharia para realizar uma “Constituinte Exclusiva
da Reforma Política”. Ambas as reações ao anúncio, contrárias e favoráveis, deram-se
por um mesmo motivo: ninguém entendeu do que se tratava. Aparentemente, sequer
a presidente entendia, e o assunto foi relegado à obscuridade; deixei-o para lá,
e seguiu em frente minha rotina miúda.
Foi com
surpresa, portanto, que percebi em minha página do facebook, nas últimas
semanas, grande quantidade de manifestações, e com crescente intensidade, em
favor da tal “constituinte exclusiva da reforma política”, a qual fora pintada
de tons messiânicos, salvacionistas, acompanhada de slogans entre os quais “porque
com esse Congresso não dá!” se destaca como um dos mais brandos. Mais ainda,
surpreendeu-me a grande quantidade de amigos e amigas, pessoas que respeito e
de cujas boas intenções tenho certeza, apoiando sem hesitar a proposta e nela
depositando as mais altas esperanças sobre o futuro do país. Nos últimos dias
pesquisei os principais sites e
artigos sobre o assunto – os quais, percebi, também pouco oferecem além de
bordões e expectativas genéricas – para concluir o que me agora me faz sentar e
escrever este texto: o apoio à realização de uma “constituinte exclusiva para a
reforma política” é uma grande irresponsabilidade, fruto de ignorância, ingenuidade
ou malícia. Seguem abaixo meus motivos.
Minha
intuição primeira é a de que boa parte das pessoas que brada em capslock pela
realização da tal constituinte não tem a mínima noção sobre teoria constitucional.
Não os culpo, devo dizer; passei cinco anos em um curso de direito respeitado e
não tenho grandes informações para acrescentar a alguém razoavelmente
informado. Mas espera-se que, ao se optar por abraçar uma causa de tão grande
relevo, ao menos que se informe profundamente sobre o tema, para além da noção
de que “tem que mudar!”, “desse jeito não dá!”, “a politicagem que rola aí é
corrupta e com ela nada vai ser feito!”; do contrário, é, sim, grande
irresponsabilidade fazê-lo.
Vale a pena,
então, falar basicamente sobre a constituição de um país - se algum dos meus
colegas jurídicos estiver se dando ao ingrato trabalho de ler este texto, fique
à vontade para pular este parágrafo. A Constituição Federal é nossa lei maior; é
vedado a todas outras leis, regulamentos, decretos e normas variadas elaboradas
no país contrariar qualquer de seus dispositivos. A elaboração da constituição
por meio da Assembleia Constituinte pode se dar de variadas maneiras, mas
corresponde invariavelmente à quebra de uma ordem jurídico-política anterior. É
processo político, não jurídico, e não se sujeita a qualquer norma existente: é
o que se chama de “poder constituinte originário”, cuja característica
principal é ser inicial (não há outro anterior a ele), autônomo (cabe a ele a
escolha plena sobre o conteúdo da futura constituição) e incondicionado (não se
limita, não se condiciona por nenhuma outra norma superior). Em termos bem
simplistas, na Assembleia Constituinte, vale tudo: monarquia, pena de morte,
religião oficial do Estado, partido único – nenhum dos tais exemplos pode
alegar ineditismo no país, diga-se. Falar em “constituinte exclusiva”,
portanto, é contradição em termos, da mesma forma que “constituinte soberana” é
redundância. Alguém com esse tantinho de informação já não pode alegar a
ignorância acima referida; passemos para a ingenuidade e malícia.
A
irresponsabilidade em se defender essa figura inédita da “constituinte
exclusiva” inicia-se na análise ligeira da quantidade de lacunas e contradições
que essa solução traria. Primeiramente, a respeito de seu conteúdo. A quem
caberia determinar, delimitar os contornos do que seria a “reforma política”? O
povo, alguém diria. Mas por meio de que instrumentos? A votação direta sobre
cada um dos pontos procedimentais da suposta assembleia? Inviável, convenhamos.
Por meio, então, da eleição de representantes a quem caberia, em última
análise, a tomada de decisões? Parece-me bastante semelhante com a relação que
desfrutamos hoje com nossos deputados e senadores – o Congresso - sobre quem
recai a culpa pela insatisfação que levou, no final das contas, à propositura
da novidade constitucional; não parece sensato imaginar que as mesmas pessoas,
ou quase isso, detentoras do poder econômico e político, seriam eleitas? Mas
dessa vez – deparei-me com seguinte solução – o financiamento das campanhas seria
exclusivamente público, dirigido a todos os sujeitos da sociedade civil,
movimentos sociais, indivíduos, ONGs, intelectuais e populares; a todos
interessados, por fim, inclusive este que vos escreve. Não consigo começar a
organizar meu pensamento para pensar em uma solução que estabelecesse critérios
razoáveis para a distribuição de ilimitado montante, mas fica aquela
desconfiança paranoica, nos fundos da cabeça, de que, talvez inadvertidamente, os
titulares em exercício do poder público – o governo de situação, enfim – privilegiassem
aqueles que tivessem em mais alta estima.
Não obstante,
façamos o exercício de imaginar que, por meio de processo minimamente
aceitável, fosse eleito um número x de iluminados a quem coubesse determinar o
conteúdo dessa fatia de constituição, supostamente vinculado à vontade popular,
por meio de plebiscitos relativos a cada um dos pontos da reforma (‘Voto
distrital, sim ou não?’; ‘fim da reeleição, sim ou não?’). Digamos, contudo,
que esses indivíduos, ou parte deles, decidissem extrapolar os limites da
opinião popular expressa em urnas, tomando decisões não somente contrárias a
ela, mas que dissessem respeito a outras áreas da matéria constitucional, como
direitos políticos. Ora, foi dito acima que para a assembleia constituinte não
há limites. Quem garantiria a vinculação das decisões dessa assembleia à suposta
vontade do povo? Não se poderia recorrer ao Supremo Tribunal Federal, pois
afirmar que uma decisão de assembleia constituinte é inconstitucional seria tão
absurdo quanto a própria ideia da assembleia exclusiva. Devemos assumir, então,
que haveria sublevação das massas, às portas da assembleia, para que fossem
cumpridos os termos estritos votados? Eu não contaria com isso. Recorreríamos
aos nossos amigos militares, para a defesa de uma ordem constitucional sequer
formada? Quem sabe pedir para que eles assumissem o assento daqueles que não
atenderam aos anseios da população, moralizando e ordenando a assembleia
deslegitimada? Imagino que esteja clara a continuidade do meu argumento...
Afirmar que essa minha pequena fantasia não tem possibilidade de acontecer
seria, novamente, ingenuidade ou malícia.
A segunda questão
que entendo relevante para me contrapor ao absurdo político e jurídico de uma
assembleia constituinte exclusiva é a de que ela não é, em absoluto,
necessária, para os fins a que supostamente se destinaria. Entendo que a
reforma política proposta passa, principalmente, pelos seguintes pontos:
financiamento de campanhas; voto distrital; reeleição; duração do mandato; voto
obrigatório; número de membros das casas do Congresso; entre outros de natureza
semelhante. Já existe o instrumento necessário para realizar essas mudanças,
ele se chama “Emenda Constitucional”, é a materialização do “poder constituinte
reformador”, está previsto a partir do art. 60 da Constituição Federal (ao
menos, antes de ela ser fatiada) e já foi utilizado impressionantes oitenta e
três vezes ao longo dos vinte e cinco anos de existência da constituição cidadã.
Não há grandes mistérios na sua utilização: o referido artigo traz os
legitimados para propô-la (entre eles inclui-se a atual Presidente da
República, que deve ter se esquecido disso durante os quatro anos em que esteve
no poder e sequer ameaçou propor algo do tipo – e agora é sua grande defensora),
e a proposta deve ser votada por três quintos de cada uma das casas do
Congresso, em dois turnos. É perfeitamente viável, formal e materialmente,
realizar a desejada reforma política fazendo uso dos procedimentos
constitucionalmente previstos; o único limite para uma emenda constitucional
são as chamadas “cláusulas pétreas”, previstas no art. 60 §4º, da Constituição
atual, e que se resumem, basicamente, à forma federativa de Estado; ao voto
secreto, universal e periódico; à separação dos Poderes; e aos direitos e garantias
individuais. Essas matérias não podem ser suprimidas por emenda; o resto é
mutável, inclusive os pontos principais da reforma proposta. Leio, contudo,
manifestações no sentido de que “do jeito que as coisas estão, muito difícil
que se realize toda a reforma pretendida”, ou de se inconformar com os procedimentos
legislativos vigentes. Ora, sejamos todos muito bem vindos à realidade da
democracia, a mais irritante das formas de governo, pela razão principal de que
devemos conviver com nossos opostos e com eles cooperarmos para progredirmos,
respeitando as regras democraticamente postas. Temos hoje uma constituição de
inédita qualidade na história brasileira; os vícios da política que sem
descanso denunciamos têm muito mais a ver com a forma como a ordem
constitucional vigente é corrompida, do que com vícios da própria constituição.
Votemos melhor; melhoremos nossos canais de pressão popular; estabeleçamos
formas variadas de comunicação e transparência entre eleitores e eleitos;
instrumentos não faltam para que, a curtos, porém sólidos passos, aperfeiçoemos
nossas instituições.
Mudar a ordem
constitucional vigente, contudo, por meio de expedientes não previstos e não
limitados constitucionalmente tem nome: é golpe; não se enganem, a virtude de
suas aspirações não ameniza a natureza golpista de seus meios. Parodio a
definição para comunismo de Susan Sontag*, esquerdista histórica, e afirmo que a
constituinte exclusiva é golpe com face humana. Gostaria de que os amigos e as
amigas que defendem a proposta realizassem o exercício de imaginar o que
achariam de uma constituinte exclusiva, nos mesmos moldes da que agora se
discute, mas com conteúdo sobre o qual discordassem. Não é tão difícil de se projetar
o cenário. Se a legitimidade adviria da manifestação popular, imaginemos que a
população evangélica devota – para se aproveitar tema em voga – em um futuro
hipotético não muito distante, aproveitando-se do pretexto de uma “constituinte
exclusiva da reforma política” realizada anos atrás, fossem bem coordenados por
uma liderança política para apoiar a realização de uma “constituinte exclusiva
dos direitos civis” (por que não, se sequer as cláusulas pétreas precisam ser
respeitas por uma assembleia constituinte?). A mim, soa naturalmente absurdo,
mas pelos mesmos motivos exaustivamente descritos ao longo deste texto. Qual
seria a diferença essencial entre as duas propostas, que não a virtude de seus
conteúdos? Arrisco dizer, inclusive, que há número bastante superior de
evangélicos dispostos a serem liderados em semelhante empreitada, do que os
supostos esclarecidos “progressistas” que defendem a atual proposta. Como se contrapor
a tal movimento, se as premissas lógicas são absolutamente as mesmas: a vontade
da maioria, a possibilidade de se alterar sem limites parcela específica da
constituição, o desprezo pelos procedimentos da ordem institucional vigente.
Espero que eu tenha conseguido me expressar de forma suficientemente clara para
que o apoiador da constituinte exclusiva, ao menos por um instante, reflita
sobre o inglório precedente que ajuda a construir, e sobre a inafastável
responsabilidade que terá por qualquer absurdo que sobrevier, com base no mesmo
raciocínio então defendido.
Novamente, e
por fim, jogo a questão na conta da ignorância, da ingenuidade ou da malícia.
Quanto à ignorância, espero ter dado uma pequena contribuição para que,
juntamente à construção de contínuo diálogo, ela deixe de ser um fator. A ingenuidade,
na qual imagino que recaia grande parte dos amigos e das amigas que defendem a
proposta, talvez seja a mais complicada das dimensões deste debate, até porque,
muito provavelmente, soa arrogante e pretensioso quem a acusa; assumo o risco.
A malícia, se de mais ninguém, vem da parte do atual governo, o qual esteve por
doze anos com ampla maioria no Congresso e sequer acenou para a possibilidade
de propor as mudanças que, agora defende, devem ser impostas à margem da
Constituição. Resta claro seu profundo desprezo pelas instituições democráticas,
as quais encara de forma unicamente instrumental: se servem à “causa”, qualquer
que seja, obedeço-lhes; quando não, ultrapasso-as sem cerimônias. Um dos
principais motivos pelos quais não terá meu voto nas eleições que se aproximam.
* "Communism is Fascism with a human face".
* "Communism is Fascism with a human face".